Anos-luz à frente do Brasil, EUA regulamentam carro autônomo

Volvo Cars and Uber present production vehicle ready for self-driving

A Administração Nacional de Segurança no Tráfego Rodoviário (NHTSA), agência do Departamento de Transportes norte-americano, publicou sua regulamentação final para veículos autônomos (AVs) que circularão nos Estados Unidos, eliminando a necessidade de controles de direção e frenagem, dentre outros que, hoje, são requeridos como normas de segurança. Trata-se de um segmento que movimentará US$ 3 trilhões (o equivalente a R$ 15 trilhões) anualmente, a partir de 2040 e, na prática, a nova publicação revê padrões que foram criados há anos e que previam que, mesmo os modelos dotados dos mais avançados níveis de condução automação, deveriam possibilitar a intervenção humana em “ultimaratio” para se evitar um acidente. Isso quer dizer que o banco do motorista e até mesmo o volante serão abolidos nestes modelos, criando um leiaute interno que nem mesmo o veículo usado pelos Jetsons, no clássico desenho animado dos anos 60, conseguiu prever, seis décadas atrás. “Para automóveis projetados com sistemas automatizados de direção (ADS), os comandos manuais serão, logicamente, desnecessários”, disse o vice-presidente da NHTSA, Steve Cliff, durante o anúncio da nova regulação.

Este é mais um movimento de políticas industrial e comercial que vai empurrando o Brasil para uma nova Idade Média, quando se trata do setor automotivo. Isso porque, para além da pequena esfera de entendimento dos “doutorados” do Facebook, do Instagram e do WhatsApp, a pessoa adulta sabe que qualquer avanço implementado em um veículo, seja ele um motor bicombustível, um pneu run-flat, um sistema de auxílio ou de condução totalmente autônoma, necessita de regulamentação – em outras palavras, precisa de uma lei que o autorize e que determine quem será responsabilizado em caso de acidentes decorrentes de uma falha. Não é à toa que a produção nacional de automóveis de passeio caiu 43,7%, nos últimos 11 anos – comparados os números de fevereiro deste ano com os do mesmo mês, de 2011. Afinal, quem vai comprar um produto pobre e defasado, tecnologicamente?

Nunca é demais lembrar que os AVs receberam investimentos de mais de US$ 450 bilhões (o equivalente à cifra astronômica R$ 2,2 trilhões), nos últimos cinco anos, só nos Estados Unidos, China e Alemanha. “Hoje, a legislação norte-americana não proíbe veículos autônomos, mas exige que eles tenham controles manuais para operação humana e que seus fabricantes solicitem à NHTSA autorização especial para comercialização”, pontua Cliff. “À medida em que a condução muda de mãos, do homem para a máquina, surgem novas exigência de segurança. Por isso, esta regulação determina que crianças não poderão ocupar a posição em que, hoje, fica o assento do motorista, porque independentemente de o volante ser abolido, aquele é um ponto em que elas ficam mais vulneráveis”, acrescentou.

A General Motors, por meio de sua divisão de AVs, a Cruise, já havia requerido permissão, em fevereiro, para iniciar a produção do Origin – um monovolume com bancos voltados um para o outro e capacidade para quatro ocupantes, que não possui volante nem pedais. A permissão foi concedida pelo governo californiano no início deste mês, junto com a licença para o Waymo, da Alphabet, porém ambos operam em caráter experimental com transporte de passageiros gratuito e ainda com a presença de condutores humanos. E mesmo que pareça atrasada em relação à concorrência, nominalmente à Tesla, a Mercedes-Benz confirmou que vai ofertar seu primeiro sistema de Nível 3, o Drive Pilot, para o novo Classe S, ainda neste ano. “O Drive Pilot pode operar a até 60 km/h de forma totalmente autônoma, permitindo que o condutor exerça atividades secundárias, como assistir vídeos ou ler e enviar e-mails”, disse o presidente-executivo (CEO) da marca, OlaKallenius.

Trata-se, indubitavelmente, de um grande avanço, já que o AutoPilot da Tesla é um sistema de Nível 2, enquanto o Drive Pilot da Mercedes-Benz está um degrau acima – hoje, o único modelo dotado da tecnologia de Nível 3 é o Audi A8, com seu Traffic Jam Pilot (TJP).

DATA CENTERS

Mas há um outro lado da moeda e este, então, parece um mundo paralelo quando comparamos o debate sobre a automação veicular, no Primeiro Mundo, e a desídia do governo brasileiro sobre o tema: o CoBank, braço do sistema de crédito agrícola norte-americano que fornece empréstimos e serviços financeiros a cooperativas, agroindústrias e serviços públicos rurais, divulgou um relatório alertando para o impacto gigantesco que os AVs terão no segmento de data centers. Parece coisa de ficção científica, mas o economista-chefe do banco, Jeff Johnston, expõe números astronômicos e alarmantes ao mesmo tempo. “Em 2020, armazenamos globalmente pouco menos de 3% de todos os dados que geramos, com uma capacidade total de 2,1 zettabytes – 1 ZB equivale a um sextilhão de bytes. Ocorre que, mesmo se aumentarmos nossa capacidade de armazenamento em 100 vezes até 2035, para 210 ZB, apenas cerca de 0,4% dos dados que criaremos seria armazenada”, pontua o executivo.

Considerando que o investimento em data centers para se disponibilizar 2,1 ZB, até agora, foi de mais de US$ 2 trilhões (o equivalente a R$ 10,1 trilhões), parece claro que não há estrutura de dados para suportar uma virada para a mobilidade autônoma.  “Pergunto se os setores automotivos e de tecnologia da informação terão capacidade de armazenamento suficiente para suportar uma frota global de AVs, quando só podemos armazenar apenas 0,4% dos dados criados?”, indaga Johnston, que segue questionando: “E de onde virão os investimentos necessário para construir uma infraestrutura de data centers para a avalanche de veículos autônomos que esperamos?”

A gestora de fundos evolutivos australiana Holon Global Investments estima que a frota global de modelos autônomos pode chegar a 400 milhões de unidades, até 2035 – apenas para efeito de comparação, a frota circulante brasileira é de menos de 50 milhões de veículos. Extrapolando esses números, a esfera global de dados apenas para AVs aumentará de 64 ZB, consolidados em 2020, para surpreendentes 10.000 a 15.000 ZB, nos próximos 13 anos.

“Uma guinada abrupta do mercado, para modelos autônomos, é improvável e o que se espera dos fabricantes é que seus lançamentos vão escalar os Níveis 1, 2, 3, 4 e 5 – de automação. No entanto, algumas cidades e estados de países europeus, asiáticos e dos Estados Unidos começam a regulamentar os AVs, principalmente, para serviços de compartilhamento e carona. Las Vegas, por exemplo, permitirá que a Lyft e a Motional implantem uma frota de táxis autônomos – sem motorista – já no ano que vem. Já a Tesla, garante ElonMusk, atingirá o Nível 4 ainda em 2022, ao que tudo indica pulando um degrau para retomar a liderança global neste quesito.

Enquanto isso, seguimos sem regulação, sem infraestrutura e sem qualquer perspectiva para uma reintrodução no mercado global, pelo fato de nossa indústria estar cada vez mais defasada, tecnologicamente, e encolhendo mês a mês. Pior, nossa dependência dos combustíveis fósseis – o consumo de etanol, que é um combustível vegetal, caiu mais de 30%, em 2021 – é cada vez mais impactada por políticas que privilegiam a remuneração dos acionistas privados da Petrobras e, agora, pela crise mundial advinda da conflagração entre Rússia e Ucrânia. Hoje, até mesmo o “tiozão do zap” começa a compreender, ainda que lentamente, o tipo de espoliação que está em curso no Brasil. Ao que reafirmo o bordão de que temos, implacavelmente, nada mais do que aquilo que merecemos.