No país das notícias falsas, combustível sintético é a mentira da vez; consórcio eFuel Alliance projeta uso do produto só como aditivo e na proporção de 4%, até 2025
A formação escolar deficiente e, em muitos casos, o descaso do jovem com sua própria educação fazem do brasileiro uma presa fácil para as ‘fake news’. Não há outro lugar no mundo onde as notícias falsas tenham tanta disseminação e tanto crédito, quando em Pindorama. A mais recente delas diz respeito aos combustíveis sintéticos, os “e-fuels”, produtos mais velhos do que andar para frente, mas que vêm sendo apontados por gente dita muito especializada como a salvação para os motores a combustão. “Para os mais ingênuos e os negacionistas, o ‘e-combustível’ é o substituto óbvio, já que poderia ser usado pelos automóveis atuais e teria uma rede de distribuição prontinha”, conta o professor James Morris, pós-doutorado (PhD) em filosofia da comunicação e coordenador do curso de mestrado na University of London. “Na prática, a própria eFuel Alliance – formada por gigantes das indústrias automotiva e do setor de energia como a Liebherr, ZF, Bosch, Repsol, Mahle, ExxonMobil, Siemens Energy, entre outras – vê o produto sintético como alternativa para mistura gradual aos combustíveis fósseis e não para transição imediata. A expectativa do consórcio é para uma mistura de apenas 4%, até 2025, indo a 12%, até 2030, e chegando a 100%, apenas em 2050”.
Para quem não sabe, o processo de conversão do carvão em combustível sintético foi patenteado em 1913 e, durante a Segunda Guerra Mundial, a Alemanha nazista produziu gasolina sintética para aviação em pelo menos sete fábricas. Portanto, os e-fuels não são novidade para ninguém que já leu mais do que dois livros na vida e, antes que uma nova ‘fake news’ seja veiculada no grupo de WhatsApp do leitor, é bom frisar que, se fosse vendido na bomba do posto, um litro de gasolina sintética que a Porsche produz, no Chile, não sairia por menos de R$ 55 – algo que nem o governo Bolsonaro e seu inestimável ministro Paulo Guedes conseguiram.
O relatório “Economic and Environmental Performance of Electrofuels in Europe”, do Conselho Internacional de Transporte (ICCT), aponta que, “na melhor das hipóteses”, os combustíveis fósseis reduziriam as emissões em 70%. “Trata-se de uma questão econômica e mesmo se adotássemos uma política de incentivos, com os governos bancando três euros – o equivalente a R$ 16,25 – por litro, conseguiríamos atender menos de 0,5% do setor de transportes europeu”, aponta a diretora regional do ICCT, Stephanie Searle. Hoje, o preço médio do litro da gasolina, na Alemanha, é de 1,8 euro (o equivalente a R$ 9,80). “O problema que os usuários, os motoristas, não conseguem enxergar é que este tipo de produto é uma solução caríssima, para não dizer inviável, já que a redução de apenas um grama de CO2 para cada quilômetro rodado custaria 300 euros – o equivalente a R$ 1.630 – enquanto a multa por descumprimento dos limites atuais, na União Europeia (UE), é de 95 euros – R$ 515 – por quilômetro. Se tomarmos o óleo diesel como base, os governos também seriam obrigados a subsidiar até 2,50 euros – ou R$ 13,60 – por litro”.
Como se vê e como sempre afirmamos, neste prestigiado espaço, a virada da eletromobilidade não se dá por questões mercadológicas, muito menos por razões subjetivas, como a preferência do consumidor. São questões regulatórias, leis bem definidas e muito restritivas, que impõem emissão zero para os automóveis novos na UE, a partir de 2035. É a partir da obrigação de adequar sua operação ao ordenamento legal, que as companhias olham para suas contas bancárias e buscam soluções dentro de um espectro plausível, rentável. Porque não têm condição de operar, “ad aetermum”, no vermelho. Isso não quer dizer que os modelos atuais, equipados com motores a combustão, serão proibidos de circular do dia para a noite, nem que os postos de combustíveis serão lacrados. Mas a transição, a mudança de uma matriz energética para outra, elétrica e livre de emissões, é inexorável, inevitável, irremissível e, portanto, sem volta.
Processo de muitos estágios
Infelizmente, não faltam na internet e, principalmente, nas redes sociais, conteúdos produzidos na base da má-fé do pseudojornalismo por lambe-botas servis às montadoras – que seguem desovando lixo automotivo, no Brasil, por preços astronômicos e ganhos acintosos. “Os combustíveis sintéticos são feitos a partir da combinação de CO2 com hidrogênio, ‘matéria-prima’ que servirá para produção de um subtipo, no caso a gasolina ou o gasóleo – o óleo diesel. É um processo de muitos estágios, cada um dos quais aumentando custos e consumindo uma enorme quantidade de energia – elétrica, já que as fábricas não são mais à lenha. Mas o elemento-chave, aqui, é o hidrogênio, o que nos leva às células a combustível”, detalha Adam Christensen, técnico da GAMS Development, que desenvolve modelos de otimização matemática para o setor de transportes. De acordo com a Federação Europeia para o Transporte e o Meio Ambiente (T&E), células a combustível de hidrogênio são, atualmente, 2,3 vezes menos eficientes em termos energéticos do que as baterias dos EVs, com uma projeção de queda deste déficit para duas vezes, até 2050. Já os combustíveis sintéticos são quatro vezes menos eficientes e não há perspectiva de melhora até 2050.
“Traduzindo: alimentar uma frota movida por combustíveis sintéticos exige quatro vezes mais eletricidade, do que para recarregar as baterias dos EVs. Isso é impraticável. Nosso modelo aduz que, se apenas 10% dos carros de passeio, comerciais leves e caminhões do Reino Unido usassem combustíveis sintéticos, isso exigiria três vezes mais eletricidade renovável do que se estes mesmos veículos usassem baterias. Portanto e sem querer ser repetitivo, é totalmente impossível que o combustível sintético seja mais barato do que usar eletricidade para carregar as baterias dos EVs”, sentencia Christensen.
Se o leitor chegou até aqui, neste texto, merece saber que há sim, em Punta Arenas (Chile), uma usina da Porsche em parceria com a chilena Highly Innovative Fuels (HIF). Neste paraíso idílico, a marca brindou, em dezembro de 2022 (vulgo, há apenas quatro meses), o lançamento comercial de seu – na verdade, da HIF – combustível sintético. As primeiras gotinhas são para ser usadas com moderação, já que saem por dez euros (o equivalente a absurdos R$ 54,50), o litro. Os quase 760 mil litros, o equivalente a 25 caminhões-tanque de média capacidade, que saírem de lá serão usados exclusivamente em competições automobilísticas – nunca é demais lembrar que a Fórmula 1 usará gasolina sintética, a partir de 2026. E quem ainda acredita na ‘fake news’ de que este tipo de combustível é a salvação dos motores térmicos, vai aí um dado: o consumo diário de gasolina no Brasil, em dezembro de 2022, foi de 1,33 bilhão de litros, portanto 1.750 vezes superior à capacidade anual de produção da Porsche.
Repetindo: no Brasil, consome-se 1.750 vezes mais gasolina, em um único dia, do que a Porsche produz no Chile, em um ano.
Não é crível
Na região chilena de Magallanes, no Chile, fortes ventos são uma fonte de energia eólica quatro vezes maior do qualquer lugar da Europa proporciona e é por isso que a Porsche gastou US$ 75 milhões (o equivalente a R$ 370 milhões) para comprar 12,5% de participação na HIF – que, frise-se, é quem faz o produto. Inicialmente, veiculou-se uma capacidade de produção de um milhão de toneladas de metanol verde por ano; depois, de 14,5 milhões de galões (quase 55 milhões de litros) por ano e, depois, de dez vezes mais do que isso: 500 milhões de litros por ano, antes de 2030. São números exagerados e que afrontam a inteligência mediana de qualquer cidadão que tenha estudado Matemática, no ensino fundamental. Portanto, reproduzimos as projeções da Porsche por uma questão de isonomia, no trato da notícia, mas sua afirmação não é crível e, de qualquer forma, corresponderia a menos de 30% do consumo diário, só nos Estados Unidos.
Para finalizar, é importante desmistificar a produção de combustível sintético, que ainda é vista pela grande maioria das pessoas como uma espécie de alquimia. Na verdade, a usina chilena usa uma turbina eólica de 3,4 megawatts (MW), fornecida pela Siemens Gamesa, para alimentar uma membrana de troca de prótons que produz hidrogênio “verde” a partir da água, por eletrólise, com 65% de eficiência – 35% do processo, portanto, é perda. No futuro, a capacidade eólica pode chegar a 2,5 gigawatts (GW), mas não especularemos a este respeito, porque as empresas podem falir ou, simplesmente, desistirem do projeto. Um sistema da Global Thermostats extrai gás carbônico do ar, que é “lavado” por vapor de baixa temperatura para produzir 98% de CO2 puro. O metanol verde, então, é obtido pela passagem do hidrogênio e do CO2 através de um catalisador. Por fim, o metanol é processado (superaquecido e vaporizado) e convertido em gasolina ‘fake’, emitindo água como subproduto. Simples, assim!
“A questão principal, na virada da eletromobilidade, é exatamente esta: encontrar energia limpa durante os processos. Qualquer um consegue enxergar que a Europa não está pronta, em termos de infraestrutura, para as mudanças que ocorrerão em 2035. No setor energético, os prazos são curtos e o fim dos combustíveis fósseis como matriz deixa muitos segmentos moribundos. Os trabalhadores já estão migrando para indústrias com melhores perspectivas para o futuro. O fim está próximo para os motores a combustão”, sentencia o diretor executivo da Brembo e membro do Conselho Geral da Confederação Italiana da Indústria (Confindustria), Roberto Vavassori.
Na Alemanha, berço do nazismo das décadas de 20 e 30, o líder do partido pró-empresarial FDP (o “Freie Demokratische Partei” ou Partido Democrata-Liberal, em tradução livre), Christian Lindner, tem feito uma oposição “olavista” à proibição dos motores a combustão. Lindner, um fã do Porsche 911, foi flagrado enviando mensagens de texto para o presidente-executivo (CEO) da Porsche, Oliver Blume, numa espécie de negociação antirrepublicana que prometia benefícios à montadora. Mas ele não tem credibilidade nenhuma para além de seus eleitores extremistas.
“Eu diria que é um movimento patético”, avalia Thomas Ingenlath, CEO da Polestar, marca sueca de EVs que é um braço da Volvo. “A legislação europeia já se encontra em um estágio muito avançado e os fabricantes estão investindo bilhões, trilhões para eletrificação de suas gamas. Essa conversa de combustíveis sintéticos é uma distração cara e tanto nós, como indústria, como os legisladores, como representantes populares, devíamos nos concentrar naquilo que vem pela frente. Se a Porsche não quer oferecer uma opção elétrica para seu esportivo 911, não adianta relutar e nem fazer oposição às leis da UE, porque sua força econômica não será capaz de impedir a virada da eletromobilidade”, declarou Ingenlath.
Como se pode ver, toda ‘fake news’ serve, lá no fundo, para sequestrar os intelectualmente vulneráveis em direção aos cabrestos dos malandrões…