Carros estadunidenses parecem condenados a motor térmico, enquanto Europa avança na eletrificação

O presidente-executivo (CEO) da Stellantis, Carlos Tavares: “Não estamos certos sobre nosso futuro, na China, a médio e longo prazos”; lá, a palavra de um homem de negócios não pode fazer curvas

Ao que tudo indica, a Stellantis, quinto maior grupo automotivo do mundo, que reúne as marcas Jeep, Fiat, Peugeot, Citroën, Alfa Romeo, Chrysler, Dodge, DS, Lancia, Maserati, Opel, RAM e Vauxhall, encerrará sua produção doméstica, na China. Dando este passo para trás, a gigante multinacional se blinda de crescentes tensões geopolíticas, no momento em que os fabricantes ocidentais perdem participação de mercado chinês para startups locais, mas deixará de competir no maior e mais concorrido mercado do mundo. O presidente-executivo (CEO) da Stellantis, Carlos Tavares, voltou a falar em “asset-light” – estratégia de negócios em que a empresa mantém a menor quantidade possível de ativos, apenas aqueles de fato necessários para conduzir suas operações – para justificar o recuo. “Podemos seguir competindo, na China, importando veículos da Europa e dos Estados Unidos. Não estamos certos sobre nosso futuro, no país, a médio e longo prazos”, declarou Tavares, durante o Salão do Automóvel de Paris (Paris Auto Show), encerrado no último domingo.

O CEO do grupo, na verdade, tenta esconder uma dura realidade: “A Stellantis não consegue estabelecer um mecanismo operacional adaptado ao ambiente chinês, altamente competitivo. Sem isso, não tem como reverter as perdas contínuas dos últimos anos”, disse o presidente da megaestatal Guangzhou Automobile (GAC), Qing Hong Zheng. A GAC e a Stellantis tiveram uma joint venture local, entre 2010 e julho deste ano, para produção de modelos da Jeep, quando o grupo ocidental concluiu que era melhor encerrar a parceria, culpando “a interferência cada vez maior dos políticos locais no mercado” – palavras de Carlos Tavares à “Bloomberg”.

“A Jeep misturou política e produção de automóveis, criando um pesadelo para si mesma”, avalia o diretor executivo da ZoZo Go, consultoria que dá suporte local para investidores, montadoras e fornecedores sobre EVs, Michael Dunne. Só em 2021, as vendas dos veículos produzidos em parceria com a GAC caíram 50%, o que vai na contramão do anúncio da própria Stellantis, que planejava que suas receitas, na China, chegariam a 20 bilhões de euros (o equivalente a R$ 105 bilhões), até 2030 – aqui, no Brasil, a marca também amarga queda comercial de 11%, neste ano, e redução de meio ponto percentual da sua fatia no bolo.

 

Linha de montagem da joint venture iniciada pela Peugeot Citroën (PSA) com a Dongfeng, que também pode ser encerrada pela Stellantis Crédito: DONGFENG

“Estamos no início do fim da era das joint ventures, na China, que é o maior mercado do planeta, de onde nenhuma marca quer sair. Mas os consumidores chineses já sabem que podem comprar um veículo muito bom, de fabricantes locais e veem gigantes como a General Motors e a Volkswagen como potências de ontem”, acrescenta Dunne, lembrando que, há mais de uma década, o antes CEO da Fiat Chrysler Automobile (FCA), Mike Manley, já tinha criado polêmica ao dizer que a Jeep fabricaria todos os seus modelos, na China. Apesar do desempenho ruim, em 2021, a Stellantis informou a seus acionistas, no último mês de janeiro e no melhor “estilo Pinóquio”, que melhorara seus negócios atrás da Grande Muralha – tudo mentira.

Curiosamente, o divórcio acontece na China seis meses depois de a Stellantis anunciar, também em janeiro, que iria aumentar sua participação na joint venture de 50% para 75%, o que foi muito mal recebido pela GAC. Com menos de 1% de participação no mercado chinês, a Jeep procura reorganizar sua estratégia no país, mas a molecagem alcançou um ponto intolerável com as insinuações de Tavares, na França, e agora é a Dongfeng Motor, que mantém uma parceria com a Peugeot-Citroën, que se diz surpresa com o revelado no Salão de Paris.

“Estamos surpresos, porque nunca fomos comunicados sobre esta intenção por parte da Stellantis. Nossa joint venture acumula resultados positivos, nos últimos 23 meses, e nós, chineses, fizemos um grande esforço, contribuindo decisivamente para este crescimento”, declarou o presidente da Dongfeng, Zhu Yanfeng. O que está muito claro é que, na China, a palavra de um homem de negócios não pode fazer curvas e a retidão é uma condição indispensável para o cumprimento do acordado, atrás da Grande Muralha.

O diretor executivo da ZoZo Go, Michael Dunne: “A Jeep misturou política e produção de automóveis, criando um pesadelo para si mesma”
CRÉDITO – F+L Asia

Condenada aos motores térmicos

Em sentido oposto ao aventado por Tavares, BMW e Volkswagen aumentaram suas participações em joint ventures com parceiros chineses, nos últimos anos, especialmente depois que o país afrouxou as regulamentações que anteriormente impediam as montadoras estrangeiras de deterem a maioria do negócio. Só para os primeiros seis meses deste ano, a Stellantis reconhecerá perdas de quase 300 milhões de euros (o equivalente a quase R$ 1,6 bilhão), o que leva o consumidor brasileiro mais consciente a desconfiar do momento por que passa a Jeep, até porque é no Brasil que seus SUVs têm os preços mais altos do mundo, tanto nominalmente quanto proporcionalmente.

“A marca Jeep continuará a fortalecer sua oferta de produtos na China, com uma linha de veículos elétricos (EVs) importados”, garantiu a Stellantis em um comunicado distribuído para apagar o “incêndio”.

O fato é que, até o último mês de julho, as vendas de EVs na China foram amplamente dominadas pelas marcas locais, que responderam por 80% do volume comercial deste segmento. Por outro lado, o mercado chinês é o termômetro global de eletrificação das montadoras e, por lá, as multinacionais ocidentais vêm suando a camisa, mas evoluindo muito lentamente em relação às startups domésticas. “A Jeep está muito atrasada, em termos de eletrificação. É um salto enorme e pensar que a marca vai pular, num estalo de dedos, para o topo de pirâmide é muita ingenuidade”, avalia a analista executiva da Cox Automotive, que fornece soluções em marketing digital, varejo, atacado e finanças para o setor automotivo, Michelle Krebs. “Eles falam sobre o assunto como se não existisse concorrência neste segmento”.

A Jeep parece, mesmo, viver em uma bolha, já que, na última quarta-feira, ressuscitou os grandalhões Wagoneer L e Grand Wagoneer L, este último um SUV com 5,75 metros de comprimento e três toneladas (3.040 kg). Ambos são equipados com o motor Hurricane Twin-Turbo, de seis cilindros em linha, com até 510 cv de potência, mas é o consumo declarado de inverosímeis 9,7 km/l, para ciclo urbano – eu apostaria que, no uso diário, não chega nem à metade disso – que dá o tom paradoxal ao lançamento norte-americano. “Ninguém pode dizer quando chegaremos ao ponto de inflexão em que os EVs ultrapassarão os modelos com motores térmicos, mas, até lá, eles terão um crescimento contínuo”, pondera Michelle.

Novo Avenger, primeiro modelo 100% elétrico da Jeep, que começa a sair da fábrica polonesa de Tychy em 2023. Crédito: Jeep

Primeiro ‘SEV’, só em 2023

Enquanto isso, o primeiro modelo 100% elétrico da Jeep, o Avenger, só começa a sair da fábrica polonesa de Tychy em 2023. “Esperamos dobrar nossas vendas europeias com este ‘SEV’, para a casa das 300 mil unidades anuais”, disse o presidente-executivo (CEO) da marca, Christian Meunier – isso mesmo, um francês. Parece um plano inexequível, até porque a Jeep, com menos de 130 mil unidades vendidas no Velho Continente, em 2021, viu seu volume comercial despencar 23,5%, só nos últimos três anos. “Tivemos problemas de adaptação com nossas motorizações turbodiesel e não obtivemos nenhuma vantagem fiscal, o que acabou freando nossos negócios”, justifica Meunier. Fato é que o atraso injustificável da Jeep em eletrificar seu portfólio pode custar caro, em um futuro não tão distante.

Seus modelos mais icônicos, que têm origem norte-americana, parecem condenados aos atuais motores de combustão e a única plataforma dedicada para EVs de que a Stellantis dispõe, para emprestar à Jeep, é a segunda geração da base eCMP, que rebaixaria todos seus SUVs compactos ao mesmo status do e-208, da Peugeot, e do ë-C4, da Citroën. Ou seja: a Jeep terá que escolher entre preservar os atributos históricos que deram valor à sua imagem ou se “peugeotizar”, o que soa como um sacrilégio para os puristas. “A capacitação do Avenger foi dimensionada para o público europeu”, reconhece a chefona da marca por lá, Antonella Bruno.

Manter duas estruturas fabris, uma para produção de veículos convencionais e outra, para EVs, é inviável técnica e economicamente, lembrando ainda que os propulsores térmicos estão sentenciados à morte na Europa e Estados Unidos, onde as legislações avançam, cada qual a seu tempo, rumo à emissão zero. E por mais despótica que seja a estratégia comercial da Jeep, por aqui, achar que um mercado como o brasileiro tem condições de subsidiar a estratégia global é mais ingenuidade ainda, até porque a espoliação do consumidor está muito próxima do limite suportável. Estranho, mas, em 2017, a Jeep despontava porque tinha, sozinha, um valor estimado de mercado 20% maior que o de toda a FCA. Foi surfando essa onda que dois anos depois, em 2019, Christian Meunier – o mesmo de hoje – anunciou que “até 2022, todos os modelos da Jeep” seriam “eletrificados”.

Ocorre que novembro e dezembro estão aí, e não parece que também este compromisso não será cumprido. Como diz o ditado, “a mentira destrói” e o nariz grande da Stellantis pode enterrar a Jeep que, até outro dia, era a menina dos olhos de um grupo que, só nos últimos 12 meses, perdeu 33% de seu valor de mercado.