Vassalagem aos EUA e negação da virada da eletromobilidade nos custará R$ 590 bilhões anuais
A paixão do brasileiro por automóveis não pode ser medida com uma régua escolar e só mesmo uma calculadora científica é capaz de mensurar o tamanho deste amor e o quanto ele pode se impor sobre a razão. Para o Carbon Tracker, grupo de estudos britânico que avalia o impacto das mudanças climáticas nos mercados financeiros, dá para estimar esse desejo em ardentes US$ 100 bilhões anuais – o equivalente a R$ 590 bilhões, por ano. É uma cifra portentosa, até mesmo diante do ardor automotivo tupiniquim, que parece não conhecer limites. E sejamos francos: ninguém irá se surpreender se, daqui a sete ou dez anos, cruzar com qualquer um daqueles deportados dos Estados Unidos, com algemas nos punhos e nas canelas, já refeito da humilhação e ostentando um sorriso hollywoodiano a bordo do zero-quilômetro “made in USA” que acaba de tirar da concessionária. O futuro possante, importando da terra do Tio Sam e vendido por R$ 200 mil, trará sob o capô o mesmíssimo motor a combustão interna que, até 2035, terá sido descontinuado no Primeiro Mundo.
“O Brasil precisa muito de nós”, disse o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, ao ser perguntado sobre as relações comerciais entre os dois países, apenas um dia após a posse para seu segundo mandato. “Vamos salvar a indústria automotiva norte-americana e um choque tarifário é a única forma de fazê-lo”, garantiu ele durante seu discurso no Senado, sem esconder que o plano “tabajara” se alicerça no aumento de impostos para veículos importados e numa marcha a ré tecnológica que daria sobrevida aos motores a combustão.
Na cabeça de Trump, o aumento nos preços dos modelos estrangeiros devolverá competitividade para os automóveis “made in USA”, cujas vendas aumentariam, ao mesmo tempo em que atrairia marcas japonesas, européias e chinesas para fabricarem localmente, se esquivando da taxação. Soerguido o setor, o próximo passo seria inundar os países do Sul Global – vulgo, do Terceiro Mundo – com veículos ultrapassados e poluidores, mas com preços atrativos. “Muitos países no Sul Global seguirão dependentes dos combustíveis fósseis, como uma reserva de mercado para veículos equipados com motores a combustão interna. Na prática, montadoras transnacionais continuarão vendendo esse tipo de automóvel nas economias emergentes, mesmo depois de eles serem sucedidos por EVs em toda a União Europeia, no Reino Unido, Canadá e em pelo menos sete Estados norte-americanos”, comenta o físico e analista automotivo Ben Scott, que assina o relatório do Carbon Tracker.
Para ele, é exatamente isso que a gestão Trump tem em mente: manter a dependência do setor de transportes de países como Brasil, Argentina, México, Índia, Indonésia, África do Sul, Uganda, Nigéria, Marrocos, Quênia, Egito e Argélia. “Essas nações têm grandes frotas de veículos equipados com motores a combustão e a maioria delas gasta bilhões de dólares, todos os anos, com importação de combustível”, pontua Scott. Com o leitor pode ver, enquanto as gigantes do setor automotivo desovam veículos ultrapassados no Terceiro Mundo, companhias petrolíferas oito vezes maiores que as montadoras fornecem energia para frotas que somam mais de 300 milhões de veículos – juntas, Exxon Mobil, Chevron e Shell têm uma capitalização de mercado de quase US$ 1 trilhão (o equivalente a quase R$ 6 trilhões), enquanto todas as marcas da General Motors, do grupo Volkswagen e da Stellantis não passam de US$ 150 bilhões (o equivalente a R$ 880 bilhões).
O problema é que a dependência agravará as perdas de capital e de moeda estrangeira para o Sul Global. Afinal, só estes 12 países listados importam mais US$ 13,3 bilhões (o equivalente a quase R$ 80 bilhões) em combustíveis refinados, anualmente.
Neocolonialismo
A forma encontrada por Donald Trump para garantir a manutenção do neocolonialismo norte-americano é controversa: tarifar produtos importados para impulsionar a economia interna, dentro dos EUA. Os automóveis produzidos no México, por exemplo, encolheriam de 10% a 15% no mercado norte-americano, só em função do aumento das alíquotas de importação – abrindo caminho para os modelos de produção doméstica. Já para barrar os EVs chineses, a forma encontrada por Trump vai além da taxação e inclui o fim dos créditos fiscais para veículos elétricos, além da revogação da ordem executiva – porém não vinculativa, ou seja, que não tem o poder de obrigar – do ex-presidente Joe Biden, de que os EVs representassem 50% das vendas de modelos zero-quilômetros, por lá, já em 2030. O caminho claramente delineado é, na verdade, um retorno para a matriz energética do petróleo e uma espécie de ressurreição de uma indústria automotiva que, após 70 anos de protagonismo, sucumbiu ao modelo administrativo japonês e às novas tecnologias.
É provável que, enquanto o leitor passa os olhos por estas mal traçadas linhas, o governo Trump já tenha cumprido a promessa de impor uma tarifa de 25% sobre todas as importações do Canadá e do México. “O problema é que esse choque tarifário não só aumenta os preços dos modelos zero-quilômetros importados, mas também daqueles produzidos nos EUA com peças canadenses e mexicanas, que não podem ser, simplesmente, substituídas do dia para a noite”, comenta o vice-presidente de estratégia de previsão da S&P Global Mobility, Michael Robinet. Para ele, os impostos podem, contrariamente ao previsto por Trump, derrubar a produção de veículos em todo o continente e colocar o preço dos carros novos fora do alcance de muitos compradores, o que seria um verdadeiro desastre.
“Muitos fabricantes podem desacelerar sua produção ou até mesmo fechar suas plantas e, isso, em um prazo relativamente curto”, pondera Robinet. “Isso porque, mesmo que um automóvel seja montado nos Estados Unidos, ele usa peças importadas do México e do Canadá que também estão sujeitas às tarifas. Na ponta do lápis, isso aumenta os custos de produção e, é importante frisar, que não existe nenhum veículo totalmente norte-americano, já que as montadoras dos três países operam como um mercado relativamente unificado há anos, devido ao NAFTA e, posteriormente, aos acordos comerciais do USMCA. Nossos veículos e nossas autopeças circulam livremente pela fronteira, e em muitos casos várias vezes”, acrescenta.
Subserviência
Daqui de longe, do Brasil, pode-se ter a impressão de que estamos diante de uma questão alheia aos nossos interesses, mas o plano de salvação idealizado por Trump depende da subserviência das nações periféricas para dar frutos. “Neste contexto, o Sul Global corre o risco de se tornar depósitos de lixo para veículos equipados com motores a combustão, permitindo às montadoras vendê-los nos 12 países que já citei, além de outros, mesmo depois de 2035”, alerta o analista automotivo Ben Scott, do Carbon Tracker Scott. “Essas nações só conseguirão se blindar do neocolonialismo desenvolvendo e/ou reconfigurando suas indústrias automotivas, migrando os EVs. Parcerias com montadoras chinesas são o atalho para exploração de um novo mercado, vital e em expansão, principalmente à medida que as populações regionais crescem. Nacionalizar a montagem de veículos elétricos reduzirá custos e qualificará os mercados domésticos em todo o Sul Global”, assegura Scott.
O brasileiro, infantilizado pelo amor por nutre por carros, deve preparar o bolso, porque ao que tudo indica a paixão lhe sairá cada vez mais cara. “Dentro de 30 a 45 dias, é o consumidor, não importa se escolha um modelo norte-americano, canadense ou mexicano, quem vai arcar com o aumento nos preços. É ele que bancará o aumento nas tarifas, até porque os fabricantes e os fornecedores de autopeças não são instituições de caridade e, principalmente no momento em que sofrem uma concorrência sem precedentes dos EVs chineses, não irão absorver mais este custo”, assegura a analista executiva da Cox Automotive, Erin Keating.
Por aqui, não será diferente. “Capitalizar os avanços tecnológicos dos EVs é a única forma que as nações periféricas têm para evitar desvantagens econômicas decorrentes da ação predatória que se avizinha. Só assim, elas conseguiriam reduzir custos de produção e despesas operacionais, ofertando automóveis mais avançados e mais baratos para suas populações”, recomenda Erin. Para ela, adiar a implementação de tal política pode significar a perda de uma oportunidade valiosa. “À medida que os veículos elétricos se tornam prevalentes nos países desenvolvidos, a disponibilidade para exportação de modelos equipados com motores a combustão diminuirá. Consequentemente e coroando a estratégia de Trump, a qualidade destes produtos vai cair, enquanto seus preços irão aumentar”, conclui.