Enquanto europeus buscam solução geopolítica para a virada da eletromobilidade, Brasil segue alheio às oportunidades
A estagnação do setor automotivo, que fechou o ano passado com volumes inferiores aos de 2021 em praticamente todos os mercados do mundo, pode ser medida por um número bastante representativo: 46 milhões de veículos. Este é o “déficit” produtivo atual, acumulado nos últimos três anos, em relação ao período pré-pandemia. E há um longo e lento caminho a ser percorrido para a recuperação. As vendas globais do Grupo Volkswagen, por exemplo, caíram 7% em 2022, para a casa de 8,3 milhões de unidades – nem a alta expressiva de mais de 25% entre os EVs conseguiu reverter a curva. “Há muito o que fazer e uma das opções é uma ‘reindustrialização’ europeia, capaz de trazer cadeias produtivas de volta ao Velho Continente”, avalia o presidente-executivo (CEO) da Stellantis, Carlos Tavares – a Stellantis é uma das gigantes do setor, que reúne as marcas Fiat, Jeep, Peugeot, Critroën, Alfa Romeo, Maserati, Chrysler, Dodge e RAM, entre nove outras, e que produz em 30 países, incluindo o Brasil.
A afirmação feita na semana passada durante a CES (Consumer Electronics Show), maior salão de tecnologia do mundo, é uma evidência do papel irrelevante que as subsidiárias brasileiras seguirão tendo na virada da eletromobilidade, pelo menos a curto e médio prazos. “A União Europeia necessita de uma política comercial diferenciada, porque a regulamentação atual deixa nossos EVs 40% mais caros que seus equivalentes chineses”, acrescentou Tavares. A ameaça às montadoras tradicionais vem da China, mas, para o Brasil, uma reconcentração da cadeia produtiva, na Europa, significa a precarização da indústria nacional e de seus produtos, com inflação dos preços e participação cada vez maior de modelos importados no mercado nacional.
Apenas para o leitor ter uma ideia, no longínquo ano de 1959, a VW iniciou a produção local da Kombi com um índice de nacionalização de 50%. Mais de seis décadas depois, a média das montadoras instaladas no país fica em 60%. Ou seja: se em 63 anos, tudo o que conseguimos foi aumentar esta relação em apenas dez pontos percentuais, resta evidente que rumamos para uma nova “Era das Carroças”, época em que o Opala reinou como suprassumo por mais de duas décadas num cenário absolutamente inerte. “Temos de construir um novo parque industrial para veículos híbridos e EVs, no Brasil, incorporando tecnologias à competência brasileira em combustíveis de baixa emissão”, alerta o presidente da Associação Brasileira do Veículo Elétrico (ABVE), Adalberto Maluf.
Antes de mais nada, é importante deixar claro que nenhuma solução instantânea para a crise de abastecimento de semicondutores retornará os volumes ‘normais’ de produção, mas este interregno pode favorecer o Brasil, se soubermos aproveitá-lo. “Os preços dos modelos zero-quilômetro estão fora do alcance da maioria dos consumidores, que vêm migrando para o mercado de usados. Alternativas como o carro por assinatura ainda não decolaram e, ao mesmo tempo em que os seminovos seguem ganhando espaço, as matérias-primas essenciais para a montagem de EVs, como cobalto, lítio e magnésio registram uma disparada de preços, elevando o custo de produção”, pontua o analista Pete Bigelow, chefe da editoria de Tecnologia e Inovação da “AutoNews”.
Novos concorrentes
O jogo mudou, principalmente nos segmentos de entrada, onde os consumidores têm menos dinheiro e mente aberta, sendo atraídos mais pelo preço do que pelo prestígio dos fabricantes tradicionais, quando avaliam a compra de um EV. Novas montadoras, incluindo startups independentes e as apoiadas por companhias transnacionais, vêm criando uma paisagem diferente nas ruas. Novas marcas chinesas, por sua vez, vêm ganhando terreno internacionalmente, preenchendo o vazio deixado por Fiat, VW, Chevrolet e Renault, dentre outras, quando descontinuam modelos de entrada que, apesar de serem acessíveis, deixaram de ser lucrativos há anos. “A MG, a BYD (do Grupo SAIC), a Zeekr e a Nio (subsidiária da Geely) estão ganhando terreno com seus EVs, no mercado europeu. Se nos mantivermos abertos à invasão chinesa, não teremos escolha”, avalia Carlos Tavares.
O CEO da Stellantis pressiona o Parlamento Europeu para tomar “decisões impopulares” no sentido de barrar a entrada dos EVs asiáticos. “Teremos que reduzir nossa produção, fechar fábricas ou realocá-las para países onde a operação é financeiramente mais favorável”, acrescentou o executivo. Ocorre que, infelizmente, o local “mais favorável” está longe de ser o Brasil que, sem ter uma montadora 100% nacional, não só vai ficar de fora deste rearranjo industrial como será presa fácil para os chineses.
Hoje, os HEV flex – híbridos equipados com motor bicombustível, mas que não são plug-in, ou seja, não podem ter suas baterias recarregadas por fonte externa – têm o maior market share entre os modelos eletrificados, no Brasil, respondendo por 48% desse nicho. “Esta é a tecnologia mais aceita até o momento pelos consumidores brasileiros e tal escolha pode ser justificada por serem veículos muito semelhantes aos modelos convencionais, com motores a combustão interna, e que não demandam infraestrutura específica de recarga”, pontua o presidente da ABVE, Adalberto Maluf. O problema é que este tipo de trem de força já está em desuso nos países desenvolvidos, onde até mesmo os híbridos plug-in vêm sendo preteridos tanto pelos consumidores, quanto pelos órgãos governamentais – que estão retirando seus incentivos fiscais.
Em 2022, nenhum modelo 100% elétrico vendido no Brasil ultrapassou a barreira de vendas de 1.000 unidades – isso, durante todo o ano – e, na contramão da realidade global, o país parece satisfeito com os cerca de 3.000 pontos de recarga existentes. Apenas para o leitor ter uma ideia do toque de caixa da virada da eletromobilidade, a subsidiária norte-americana da Shell confirmou, nesta semana, que vai adquirir a rede de recarregamento Volta, nos Estados Unidos, por quase US$ 170 milhões – o equivalente a R$ 880 milhões. Dias antes, a Mercedes-Benz anunciou que vai investir bilhões de dólares para construir 10 mil pontos de carregamento rápido na América do Norte, Europa e China, até 2030, deixando o Brasil de fora de seus planos.
Recarga em cinco minutos
Nos Estados Unidos, onde o protecionismo encontra a cama sempre arrumada para deitar, a tensão entre Washington e Pequim, nominalmente o sentimento anti-China dos norte-americanos e a decisão do presidente Joe Biden de priorizar a produção doméstica de EVs e pacotes de baterias, levaram a BYD ao modo de espera. A titã chinesa da eletromobilidade (líder global com mais de 1,8 milhões de EVs vendidos, só em 2022) adota uma abordagem cautelosa para os EUA, já que seu plano de “invasão” foi complicado pela Lei de Redução da Inflação de Biden, que impõe regras sobre onde obter materiais para baterias e deselege os EVs produzidos fora da América do Norte para o desconto de compra de US$ 7.500 – e quem, em sã consciência, começaria a vender carros com uma desvantagem equivalente a quase R$ 40 mil?
Já por aqui, não se vê políticas públicas para desenvolvimento de tecnologia e nem para o incentivo da produção local, deixando o campo aberto para as importações – a cidade de São Paulo é uma exceção, com isenção tributária para quem adquirir um EV. “Durante 2022, várias marcas lançaram modelos eletrificados, no Brasil, e até mesmo os comerciais leves elétricos apresentaram crescimento, refletindo uma necessidade de as empresas operarem seu transporte de modo mais sustentável e menos poluente, mas o compromisso ambiental e de governança esbarra na oferta limitada a oito modelos”, pondera Maluf. Em outras palavras, nem no segmento de carga, em que o país sempre sobressaiu pela criatividade e eficiência, vê-se uma luz no fim do túnel.
E se você ainda não está convencido de que a eletromobilidade é um caminho sem volta e segue sonhando com a praticidade da bomba de combustível, que enche o tanque de seu valente Golzinho em dois ou três minutinhos, é bom se ligar no projeto da Purdue University, que fica no Estado de Indiana e é patrocinado pela Agência Espacial Norte-Americana (NASA). O sistema desenvolvido pela universidade promete recarga completa das baterias de EVs em apenas cinco minutos, por meio de um sistema de dissipação de calor que pode ampliar a corrente de carregadores de 530 ampères em 4,6 vezes. Lá, o futuro já chegou…