EVs puros já representam 14% das vendas globais, mas embora reduza emissões, os e-SUVs vão na contramão
A virada da eletromobilidade é a pedra angular dos esforços globais para mitigar as mudanças climáticas. Os números globais de vendas indicam uma transformação notável e permitem uma projeção otimista para a frota global, já que quase 14% dos carros de passeio e comerciais novos vendidos em todo o mundo, no ano passado, foram totalmente elétricos. No entanto, o aumento paulatino da participação dos EVs nos mais variados mercados está, paradoxalmente, ligado ao aumento da oferta de modelos grandes e pesados, um fenômeno que vem sendo chamado de mobesidade – mobesity, em inglês. Antes de mais nada, cabe lembrar que, apesar de o presidente norte-americano, Donald Trump, promover uma desestabilização do ecossistema automotivo, a União Europeia vem implementando seu programa Fit for 55, apresentado inicialmente em dezembro de 2019, que visa alinhar políticas públicas e legislações tributárias para reduzir as emissões líquidas de gases de efeito estufa (GEE) em pelo menos 55%, até 2030. “No entanto, essa perspectiva transformadora ainda está muito abaixo do necessário para atingirmos emissões líquidas zero”, pontua o consultor e sócio sênior da McKinsey & Company, Andreas Cornet.
De acordo com Cornet, os EVs precisam ser responsáveis por 75% das vendas de automóveis 0 km globalmente, até 2030, o que vai muito além do curso e da velocidade atuais da indústria. Mas a própria indústria parece rodar na contramão.
“Embora a eletrificação colabore com a redução nas emissões de GEE, ao longo de todo o ciclo de vida de um automóvel, a tendência para EVs maiores, particularmente SUVs elétricos ou e-SUVs, traz desafios significativos”, avalia o físico, geógrafo e professor da Unidade de Estudos de Transporte e Mudanças Ambientais na Universidade de Oxford (Inglaterra), Christian Brand. Ele reconhece que os e-SUVs são até três vezes mais eficientes em termos energéticos, do que seus equivalentes convencionais com motor de combustão – o Hyundai INSTER tem consumo médio de eletricidade equivalente a 71,4 km/l, por exemplo – interna, no entanto, eles não só exigem mais recursos para serem produzidos, como têm maiores pegada ambiental e emissões associadas. “Mesmo com o avanço global da eletrificação da frota, as reduções necessárias no consumo de energia e nas emissões podem não se materializar na escala e no ritmo das metas climáticas. E isso porque, de uma perspectiva comercial, tanto os SUVs tradicionais quanto os novos e-SUVs compõem a classe mais lucrativa para os fabricantes, o que, em parte, explica o fato de as montadoras ocidentais retardarem sua transição para EVs menores”, pondera Brand.
Para o cientista, essa escassez artificial, somada ao marketing direcionado, influenciam as preferências do consumidor. “Também não podemos esquecer que, até em função de seu porte, os e-SUVs usam baterias maiores e de maior alcance. Portanto, não é surpreendente que esses modelos respondam por 35% das vendas de EV, em nível mundial. O problema é que suas baterias maiores e seus motores mais potentes demandam mais lítio, cobalto e outras matérias-primas críticas”, sublinha. Na prática, a extração e o processamento desses materiais consomem muita energia e são ambientalmente invasivos, exacerbando os próprios problemas que a virada da eletromobilidade visa resolver – o grandalhão Um Kia EV9, por exemplo, pesa 2.312 kg contra apenas 1.175 kg do Leapmotor T03. Além disso, o aumento de peso dos EVs contribui para um maior desgaste dos pneus e da estrada, levando a mais emissões de partículas, que são prejudiciais à saúde humana e ao meio ambiente.
Preocupação com o tamanho
“Claramente, há uma preocupação com o tamanho dos veículos e, portanto, abordar os desafios impostos pela mobilidade requer uma abordagem diferenciada que combine intervenção política, inovação tecnológica e mudanças no comportamento do consumidor. Os legisladores devem implementar regulações que desencorajem a produção e a compra de veículos maiores, promovendo modelos mais eficientes e de baixa emissão”, concorda Andreas Cornet, da McKinsey & Company. Isso incluiria sistemas de tributação baseados na massa, tamanho ou potência, com os impostos aumentando com o peso e a cavalaria do EV, combinados com impostos graduados de emissão de CO2. “Essas políticas, que incentivam a adoção de EVs menores e mais eficientes, já foram adotadas pelos governos da Suécia e da França, bem como pelo Estado norte-americano de Iowa e da municipalidade de Nova York, servindo de modelo. É evidente que um ajuste se faz necessário, porque os subsídios e incentivos atuais, geralmente, não tomam tamanho e eficiência como parâmetros de individualização”, complementa Cornet.
Para além do campo regulatório, é fundamental que ocorram avanços na tecnologia de baterias que aumentem a densidade de energia e reduzam o uso de materiais raros, permitindo que EVs menores tenham maiores alcances, atendendo as expectativas do consumidor. Apenas para o leitor ter uma ideia, o Leapmotor T03, lançado na Europa em outubro do ano passado e que, em breve, estará à venda no Brasil, tem alcance real de 230 km, pouco mais do que o extinto Volkswagen e-Up! (205 km) ofertava, em 2021 – esta versão elétrica do Up! nunca foi comercializada no Brasil, mas esteve disponível em mercados europeus até o final de 2023.
“Os investimentos de pesquisa e desenvolvimento, aliados à ampliação da reciclagem, aliviarão as pressões de demanda por matéria-prima, ao mesmo tempo em que garantirão melhor desempenho e mais praticidade para os EVs compactos. É preciso que os governos locais desempenhem seu papel fundamental de reconfigurar os espaços urbanos para, inclusive, desencorajar o uso de e-SUVs”, insiste o professor Christian Brand, da Universidade de Oxford. “Políticas que aumentam as taxas de estacionamento para veículos maiores, como a adotada em Paris, têm um papel desencorajador e campanhas de conscientização pública podem educar os consumidores sobre os impactos ambientais e econômicos dos grandalhões”, acrescenta.
Até mesmo no Brasil, onde as vendas de EVs puros cresceram 21,4% em fevereiro, sobre os números de janeiro, e 23,4% em relação ao mesmo mês de 2024, segundo dados da Associação Brasileira do Veículo Elétrico (ABVE), a virada da eletromobilidade ganha tração e só os terraplanistas se negam a enxergar que há um caminho em relação à descarbonização do setor de transporte. Mas mais ações precisam ser tomadas, num cenário de transformações que também inclui os setores de energia, infraestrutura e tecnologia.