Retração na Europa, aumento dos custos e da inadimplência criam bolha no setor

Hoje, o grande negócio do setor automotivo não é a venda de modelos zero-quilômetro, mas, sim, os serviços financeiros das montadoras
Foto: Volkswagen

A retração econômica que atinge a Europa, como um todo, alcançou o coração da indústria automotiva. É que, ao contrário do que as pessoas que “sabem tudo de carros” imaginam, o grande negócio do setor não é a venda de modelos zero-quilômetro, mas, sim, os serviços financeiros das montadoras. O Deutsche Bank e o Fundo Monetário Internacional (FMI) estimam uma retração entre 1% e 2,5% para o Produto Interno Bruto (PIB) alemão, em 2023, “é um furacão, cujos ventos não diminuirão tão cedo”. A Volkswagen Financial Services, por exemplo, projeta queda nos lucros, em decorrência dos aumentos da inflação e das taxas de juros europeias. A economia alemã – a maior do continente – estagnou no segundo trimestre deste ano e os sinais de desaceleração são cada vez mais evidentes”, avalia o diretor administrativo do RBC Capital Markets, banco de investimentos global que presta serviços para corporações, instituições, gestores de ativos e governos, Joe Spak.

Spak, que – obviamente – conhece muito mais deste mercado do que todos os comentaristas de redes sociais brasileiros, juntos, não doura a pílula: “Uma recessão para este segundo semestre é quase inevitável e o próprio Banco Central inglês (BoE) vê a Grã-Bretanha revivendo um encolhimento semelhante ao da década de 90. A expectativa deles é para que o custo de vida aumente e a prova de que essa perspectiva negativa se estende a toda Europa vem da BMW, que confirmou, na semana passada, uma queda acentuada nos pedidos de veículos novos por seus concessionários”, pontua o especialista.

A diretora financeira (CFO) da Continental, multinacional alemã que fornece partes para os setores automotivo, industrial de transporte, Katja Duerrfel
Foto: Continental

A crise atinge toda a cadeia produtiva. “Calculamos um aumento de 3,5 bilhões de euros (o equivalente a R$ 18,3 bilhões) só em custos com matérias-primas, logística e energia. Em alguns casos, os valores do que embarcamos em um único container subiram 700%”, detalha a diretora financeira (CFO) da Continental, multinacional alemã de autopeças que fornece partes para os setores automotivo, industrial de transporte, Katja Duerrfeld. “Os preços da energia bateram recordes, nas últimas semanas, com a limitação do fornecimento de gás pela Rússia e uma onda de calor que, simplesmente, secou as vias navegáveis para envio de carvão às termelétricas”, acrescentou.

“É por esta razão que a introdução de produtos financeiros e, também, de seguros deve ser feita o mais cedo possível. É uma oferta que deve acompanhar a venda do próprio veículo”, destaca o Paul McCarthy, vice-presidente sênior de vendas e marketing da holding AUL Corp. O problema é que, só no ano passado, a inadimplência de quem contratou um financiamento para compra de um zero-quilômetro, nos Estados Unidos, levou à recuperação judicial de 1,1 milhão de veículos. Ou seja, a crise já atravessou o Oceano Atlântico e chegou à terra do Tio Sam. Lá, mais de 2% dos clientes que financiaram um automóvel nos primeiros seis meses deste ano estão com suas prestações atrasadas há mais de quatro meses – o que é um escândalo para os padrões norte-americanos.

Taxa de juros
“Tanto os consumidores, quanto os concessionários, vão sentir o aumento na taxa de juros do Federal Reserve – que é o Banco Central norte-americano. Uma consequência direta disso é que o número de semanas empenhadas por uma família de classe média, para compra de um automóvel novo, atingiu seu maior nível histórico, correspondente a 9,5 meses”, cita o diretor de crédito da Moody’s, uma das referências em serviços financeiros nos Estados Unidos, Rene Lipsch. O executivo não faz ideia é de que, no Brasil, uma família de classe média – com renda domiciliar de R$ 5.225, segundo o IBGE – leva 72 meses de labuta para comprar uma porcaria de um Nivus Comfortline 200 TSI, da Volkswagen, isso se comprometer “apenas” 35% do orçamento durante seis longos anos.

“O aumento na taxa de juros reduziu a acessibilidade a um zero-quilômetro em 20% e este índice ainda deve piorar”, avalia Lipsch. “Isso nos faz reduzir a previsão de vendas no mercado interno, em 2023, para um volume de 16,3 milhões de unidades”, acrescentou. Comparada aos números brasileiros, trata-se de uma estimativa vultosa, mas vale lembrar que, em 2016, foram comercializadas 17,4 milhões de unidades, nos Estados Unidos.

Até hoje, o mercado chinês vinha salvando os balanços das maiores companhias do setor automotivo, mas a situação se inverteu recentemente, com os bloqueios de Xangai impactando nos lucros. “Apesar do momento ruim, as gigantes europeias acreditam que há mais ganhos do que perdas, atrás da Grande Muralha”, declarou o analista sênior do Mercator Instituite for China Studies, de Berlim (Alemanha), Jacob Gunter. “Está redondamente errado quem pensa que os fabricantes estão diversificando seus investimentos, fora da Ásia. Na verdade, eles estão separando suas operações chinesas das globais, mas sem chamar atenção, formando cadeias de suprimento e parcerias locais para evitar os riscos geopolíticos”.

O analista sênior do Mercator Instituite for China Studies, de Berlim (Alemanha), Jacob Gunter: “riscos geopolíticos”
Foto: Merics

Dada a conjuntura difícil, na Europa, é improvável – para não dizer imponderável – que as marcas europeias deixem de focar o mercado chinês, enquanto dão as costas para Brasil e América do Sul. “A mais recente pesquisa da Câmara de Comércio de União Europeia, divulgada em maio, revelou que 10% das companhias ouvidas enxergam a China como destino ainda mais atraente para seus investimentos, depois da conflagração na Ucrânia”, disse a economista-chefe para a região de Ásia e Pacífico do banco empresarial francês Natixis, Alicia Garcia Herrero. “Estas montadoras estão cada vez mais presas à China”.

“Melhor negócio”

Não é preciso ser historiador e nem ter bola de cristal para antever que, quando a recessão atinge as matrizes europeias, a espoliação nas colônias – como o Brasil – é acelerada, quanto mais diante do protagonismo chinês. Em outras palavras, os reflexos por aqui são e serão os piores possíveis. “Nos últimos oito anos, criamos uma rede que representava as marcas Toyota, Honda, BMW e Land Rover, no Brasil. Mas, infelizmente e apesar de nossos maiores esforços, decidimos redistribuir o capital investido nesta operação para outros mercados, onde há oportunidades de crescimento a curto prazo”, declarou o presidente-executivo (CEO) do Group 1, quarta maior rede de concessionários do mundo, que operava 17 pontos no país, Earl Hesterberg. “Temos que pensar nos nossos acionistas”, acrescenta, escolhendo bem as palavras para explicar a fuga do investimento estrangeiro.

Na Europa, a produção do setor automotivo deve cair 5%, neste ano. “Apesar de ser uma má notícia para os investidores, é uma previsão mais otimista do que a queda de 10% que estimamos, inicialmente. Por outro lado, o racionamento de energia pode até mesmo interromper as atividades nas fábricas”, pondera Kevin P. Clark, CEO da gigante do fornecimento de tecnologia automotiva Aptiv – que corresponde à uma parte da antiga Delphi. Já nos Estados Unidos, a receita de GM Financial caiu mais de 8%, só neste segundo trimestre, e o lucro líquido despencou de quase US$ 1,2 bilhões (o equivalente a R$ 6,2 bilhões) para menos de US$ 830 milhões (R$ 4,3 bilhões). “Nossa penetração no varejo subiu de 43%, em 2021, para 45%, mas a taxa média de inadimplência cresceu”, justifica o CEO da empresa, Dan Berce.

Resta para lá de evidente que uma bolha vai se formando no setor automotivo e que, o pior para os brasileiros, quando ela explodir, o consumidor daqui vai servir de guarda-corpo para proteger europeus e norte-americanos da queda livre. Não me canso de repetir que, infelizmente, o Brasil segue apartado do protagonismo, principalmente no caso da eletromobilidade, servindo apenas de vala comum para veículos defasados tecnologicamente. Não há regulação para EVs, denotando a negligência política, e a desindustrialização é patente.

Lamentavelmente, demos as costas para a nova ordem mundial e vamos suportar os prejuízos decorrentes da financeirização das marcas tradicionais e da mudança do eixo produtivo para a China.