
Independentemente das idas e vindas do assédio tarifário do presidente norte-americano, Donald Trump, em relação ao Brasil, há um consenso entre os líderes globais do setor automotivo de que as incertezas são um fator nocivo para todos os polos. “Mantendo alíquotas mais altas sobre automóveis e autopeças, a política comercial dos Estados Unidos impactará negativamente tanto domesticamente como na União Europeia (UE)”, alerta a diretora geral da Associação Europeia de Fabricantes de Automóveis (ACEA), que reúne as 16 principais montadoras do Velho Continente, Sigrid de Vries.
“EUA e UE devem concentrar-se em reduzir os obstáculos ao comércio transatlântico de automóveis, criando laços econômicos capazes de gerar prosperidade partilhada”, acrescenta Sigrid, dizendo aquilo que todo aluno do primeiro período da faculdade de Economia aprende, no semestre inaugural do curso. A verdade é que ninguém sabe, ao certo, se a taxa de 15% acordada (que representa a metade dos 30% ameaçados pelo “Laranjão”, mas é 7 vezes maior que os 2,5% de até então) será, efetivamente, posta em prática – tudo ainda é “de boca” e nada foi posto a termo. Trump é um blefador, para dizer o mínimo, e o tiro tem tudo para sair pela culatra, já que sua insanidade consolida a China, antes um mercado em crescimento para as marcas norte-americanas, como concorrente dominante por meio do redirecionamento de suas exportações.
“A incapacidade de se adaptar a mudanças estruturais tem um custo”, adverte o pesquisador do Centro Jacques Delors, da Universidade de Berlim, Jannik Jansen. E este custo não pode, simplesmente, ser compensado por aumentos tarifários. “Ao mesmo tempo em que as cotas de mercado e as vendas de marcas europeias e norte-americanas vêm caindo, no mercado chinês, o avanço da eletrificação está minando a demanda por modelos tradicionais – europeus e norte-americanos – equipados com motores de combustão interna”, acrescenta o pesquisador. As exportações chinesas de automóveis cresceram mais de sete vezes só nesta década, de US$ 15,7 bilhões (o equivalente a R$ 88 bilhões), em 2020, para US$ 117,4 bilhões (R$ 657,5 bilhões) em 2024. “A rápida ascensão de veículos elétricos (EVs) chineses em mercados emergentes, na América Latina e no Sudeste Asiático, ressaltam que a transição automotiva global prosseguirá, independentemente da política de Trump”, assegura Jansen.
Nunca é demais lembrar que na China, maior mercado automotivo do mundo, a participação combinada de veículos 100% elétricos, híbridos plug-in e de alcance estendido (EREVs) saltou de menos de 10%, em 2021, para mais de 50%, no primeiro semestre deste ano. Já no Brasil, a chinesa BYD já aparece com mais de 5% de participação entre os automóveis de passeio, com quase 48 mil unidades comercializadas entre janeiro e junho, no encalço de Honda e Jeep – para o leitor ter uma ideia, nos últimos dez anos, os números da virada da eletromobilidade no mercado brasileiro pularam de menos de 500 unidades, em 2015, para 87 mil, em 2025; alta de 17.000%.
De volta ao plano global, “o acordo comercial firmado entre Japão e Estados Unidos foi recebido com alívio, pois oferece alguma certeza de que as tarifas norte-americanas sobre veículos japoneses não alcançarão níveis punitivos”, comenta o consultor-chefe da Moody’s Analytics, Stefan Angrick. “Mas eu hesitaria em chamar isso de boa notícia, porque a alíquota de importação de 15% dos EUA ainda é significativamente mais alta do que a praticada pelo Japão, em contrapartida. A tendência é que isso potencialize a ascensão da China no setor automotivo global, pelo fato de suas marcas já estarem em grande vantagem, em termos de manufatura, e porque observamos uma queda na demanda por produtos japoneses no mercado interno chinês”, complementa Angrick.
Quem vive fora da bolha sabe que a China é, hoje, não apenas o maior mercado e a maior produtora de automóveis do mundo, mas também a maior exportadora, especialmente de EVs. “As antigas montadoras estão pressionadas pelo crescente domínio dos chineses em relação a matérias-primas críticas, especialmente entre os veículos de novas energias. Suas dezenas de marcas têm feito incursões no Sudeste Asiático, antigamente dominado por Honda e Toyota, na Austrália, na América Latina, Oriente Médio e África. Nestes mercados, a participação dos modelos made in China saltará dos 17% atuais para 43%, em 2035, enquanto os fabricantes japoneses verão sua fatia cair de 32% para 22%, no mesmo intervalo”, detalha o analista executivo da iSeeCars, ferramenta norte-americana de busca e pesquisa de tendência automotivas, Karl Brauer. “Das três grandes montadoras japonesas, por exemplo, a Nissan é a mais ameaçada”.
Irracionalidade
Outro fator que deve ser levado em conta é que automóveis fabricados fora da América do Norte quase não têm conteúdo norte-americano e criam poucos empregos. “As cadeias de suprimentos automotivos, que foram distorcidas e restringidas pela disputa tarifária criada por Trump, precisam voltar a funcionar dentro de um padrão razoável”, pondera a presidente da Associação Alemã da Indústria Automotiva (VDA), que representa centenas de produtores, entre fabricantes e fornecedores de autopeças, Hildegard Muller. “A irracionalidade da proposta norte-americana custará bilhões de dólares à indústria europeia, só na Alemanha. Isso afeta, particularmente, os sistemistas e não podemos fechar os olhos para o fato de que, desde abril, General Motors, Ford e Stellantis demitiram milhares de trabalhadores e reduziram seus volumes de produção, já que, mesmo realocando suas linhas de montagem para driblar o aumento das alíquotas, seus custos subiram até 12,5% após a dedução do conteúdo norte-americano embarcado em seus produtos”, detalha Hildegard.
Na última terça-feira, dia 29 de julho, representantes dos governos chinês e norte-americano concordaram em buscar uma extensão para a trégua tarifária de 90 dias, prevista para expirar em 12 de agosto. Após meses blefando que imporia taxas de três dígitos e até 150% para a China, Trump recuou diante da poderosa economia chinesa e do domínio do país asiático sobre os fluxos globais de minerais de terras raras. “Outra extensão de 90 dias é uma opção”, disse o representante comercial dos EUA, Jamieson Greer, que participou do acordo alinhavado em Estocolmo (Suécia). “Tivemos reuniões construtivas. Houve uma boa interação e a agenda deles é muito melhor”, completou Greer.
“Nossas equipes econômicas e comerciais manterão comunicação ativa, trocarão opiniões em tempo hábil e continuarão a promover o desenvolvimento estável e saudável das relações econômicas e comerciais bilaterais”, afirmou o principal negociador comercial da China, Li Chenggang, depois de recolocar a comitiva norte-americana dentro do seu quadradinho. “Abrimos caminho para um encontro entre Trump e o presidente chinês Xi Jinping, no final do ano, enfatizando nosso plano de a China deixar de ser uma economia de manufatura estatal, impulsionada pelas vendas externas, passando a ser impulsionada pelo aumento do consumo interno, o que abriria as portas para importações dos EUA”, explicou Chenggang.
Independência
Ocorre que, diferentemente da UE, a China não depende em absolutamente nada dos Estados Unidos para questões militares ou de segurança e, por isso, pode deixar as negociações comerciais se desenrolarem por mais alguns meses. “Os chineses estão cientes de sua forte posição de negociação, como observamos desde abril. Já os europeus vivem sob a batuta norte-americana, ficando muito vulneráveis sem a proteção dos EUA que, na prática, garantem a segurança militar do bloco. Em função disso, a UE jamais agravará sua relação com Trump, como a China fez”, explica a economista-chefe do Hamburg Commercial Bank, Cyrus de la Rubia. “Washington reclama que o modelo estatal voltado para a exportação da China está inundando os mercados mundiais com EVs baratos, enquanto Pequim diz que os controles de segurança nacional dos EUA sobre a exportação dos itens de tecnologia de trás da Grande Muralha buscam limitar o crescimento chinês”, reporta Cyrus, deixando claro que a hegemonia norte-americana do pós-guerra está com os dias contados.
“A verdade é que o impacto geral do tarifaço de Trump sobre as exportações de automóveis da China, até agora, ficou bem aquém das previsões pessimistas. As alíquotas atuais de 50% a 55% já são bastante restritivas e têm prejudicado a competitividade de modelos de muitas marcas, mas os chineses foram aprovados no ‘teste de resiliência’. Com um reendereçamento das exportações chinesas, os países assediados pelos EUA costurarão novos acordos comerciais, minimizando o impacto nas economias que não se submeterem à taxação”, avalia o economista-chefe do ING Group, multinacional de origem holandesa que fornece serviços bancários e consultoria financeira, Lynn Song. Ele reforça o entendimento de que, ao mesmo tempo em que seguem crescendo, internamente, as novas montadoras chinesas se aventuram cada vez mais na Europa, Ásia-Pacífico e América do Sul.
Como se vê, os Estados Unidos eram tidos, inicialmente, como mercado de maior potencialidade para os EVs. Mas Noruega, Holanda e até mesmo a Alemanha já são consideradas nações mais proeminentes na virada da eletromobilidade. O número de países alcançados pelas exportações chinesas está crescendo a passos largos, à medida que os novos fabricantes ganham impulso com a estimativa de que os veículos elétricos responderão por 30% das vendas globais, já em 2030. Parece claro que há uma superestimação do impacto tarifário de Trump, até porque as políticas de reciprocidade levam ao risco de os EUA reduzirem suas exportações para outros países, bastando a estes optarem por produtos de substituição. Se as alíquotas recíprocas aumentarem, tornando os manufaturados norte-americanos inviáveis, o impacto será maior para o Tio Sam do que para a China e outras economias mais auto suficientes.









