Sistema Drive Pilot, da Mercedes-Benz, será ofertado ainda neste ano, como primeiro assistente de Nível 3 em nível global
Os automóveis sem motorista (AVs) são um sonho que em alguns segmentos, como o transporte de cargas e até mesmo de passageiros, já se tornou realidade. Em San Francisco, na ensolarada Califórnia, a Cruise opera táxis autônomos há dois anos. Os modelos, denominados G3 Cruise AV, têm como base o Chevrolet Bolt e são equipados com uma suíte Velodyne LiDAR, fornecida pela empresa homônima do Vale do Silício. Para quem não sabe, a Cruise é a maior subsidiária de AVs da General Motors e uma espécie de linha de frente para os testes de campo da plataforma BEV3 da companhia, que por sua vez é o carro-chefe da promissora arquitetura Ultium. “Como nova setorista da GM, fui convidada para ‘testar’ o modelo, no último mês de março, mas, depois de um bom começo e do passeio tranquilo, o carro me deixou a alguns quilômetros do hotel onde estava hospedada”, contou a jornalista Linsay Vanhulle, da “Auto News”. Fora esse contratempo, ela elogiou a corrida: “O Cruise parou em todas as faixas e todos os semáforos, aguardou a travessia de pedestres e manteve distância segura dos veículos à frente, inclusive para eles poderem estacionar. Não me senti insegura e, provavelmente, repetiria o passeio”, disse Linsay.
Para o presidente-executivo (CEO) da empresa, Kyle Vogt, ganhar a confiança de usuários mais cautelosos será fundamental não só para a Cruise, mas para todo o negócio. “Nosso sucesso comercial está diretamente relacionado ao fato de os usuários de aplicativos preferirem nossos carros autônomos aos de uma empresa – como a Uber ou a Lyft – que opera com motoristas. E para isso é preciso que eles saibam, antecipadamente, que a corrida será segura e que, obviamente, chegarão no destino esperado”, avalia Vogt. Pelo visto, não será uma tarefa fácil.
Uma pesquisa feita pelo “Automóvel Clube” dos Estados Unidos, a American Automobile Association (AAA), apurou que 68% dos norte-americanos têm medo de embarcar em um automóvel sem motorista. Pior, a pesquisa da AAA que ouviu 1.000 entrevistados, no início deste ano, viu o grupo dos receosos saltar 13 pontos percentuais em relação aos 55% dos pesquisados, em 2022. “Sinceramente, não imaginávamos que os níveis de confiança nos AVs cairiam tanto, mas os graves acidentes que aconteceram no país, em parte devido à negligência dos motoristas, justificam esse fenômeno. As montadoras vêm equipando seus modelos com recursos de assistência mais avançados, que permitem guiar com mãos e pés livres, mas só em algumas circunstâncias. Ocorreram acidentes fatais, que motivaram investigações das autoridades governamentais e ações judiciais. Se olharmos por este lado, não é algo tão surpreendente”, pontua o diretor de pesquisas da associação, Greg Brannon.
Em março de 2022, um AV da própria Cruise freou bruscamente em uma descida de San Francisco, quando um ciclista se aproximou por trás. Ele bateu contra o vidro traseiro e sofreu ferimentos graves, de acordo com a Administração Nacional de Segurança Viária (NHTSA). Dois meses depois, em maio, foi a vez de uma carreta operada pela Waymo se envolver em um acidente com outro caminhão e, em fevereiro deste ano, o motorista de um modelo da Tesla morreu, depois que seu carro atingir um veículo do Corpo de Bombeiro californiado – neste último caso a NHTSA ainda investiga se era o AutoPilot da marca de Elon Musk “quem” dirigia.
Intervenção imediata
“Para 22% dos entrevistados, nomes como o AutoPilot, da Tesla, o Pilot Assit, da Volvo, e o ProPilot, da Nissan, indicam recursos que permitem condução totalmente autônoma, sem qualquer supervisão humana, o que não corresponde à realidade”, destaca Brannon, da AAA. Nunca é demais lembrar que a Sociedade de Engenheiros da Mobilidade (SAE) lista seis níveis de automação, que vão do Nível 0 ao Nível 5, único em que o volante é opcional. No Nível 2, o motorista deve monitorar a direção e estar preparado para intervir imediatamente a qualquer momento, se o sistema não responder adequadamente, e só no Nível 3 ele pode desviar sua atenção para, por exemplo, responder mensagens de texto ou até ver um filme a bordo. O problema é que não existe nenhum modelo chancelado como Nível 3 à venda e a Mercedes-Benz não conseguiu mais do que uma autorização específica do Estado norte-americano de Nevada para ofertar o seu Drive Pilot como opcional, no segundo semestre deste ano.
O “teste” da jornalista Linsay Vanhulle revelou outro calcanhar-de-Aquiles dos táxis autônomos, que é a conveniência. “As corridas nas grandes cidades são dinâmicas e, muitas vezes, o destino muda quando o passageiro já embarcou, seja porque o endereço adicionado estava errado ou porque o usuário descobriu que o restaurante para onde planejava ir está com uma enorme fila de espera”, comenta Linsay. “Nesses casos, sabemos que o motorista humano, simplesmente, toma a direção do destino que alteramos. Mas, pelo que vi, os AVs ainda não têm solução para casos assim e, pior, não sabemos como proceder já que não há um condutor a bordo”, pondera ela.
A Cruise garante que seus táxis autônomos permitem que os usuários mudem de rota, mesmo depois de chegarem ao destino programado, antes de saírem do carro, se o local do desembarque não parecer seguro ou, simplesmente, se os planos do passageiro mudarem. “Infelizmente, no meu caso não foi possível fazer o veículo continuar até meu hotel, depois que ele parou. Não sei se teria conseguido, se o aplicativo funcionasse conforme projetado, já que a própria Cruise disse que a falha que experimentei foi corrigida, em uma atualização. Para dar certeza, teria que tentar novamente”, disse Linsay. “De qualquer forma, parece que a Cruise deu a devida atenção ao problema, porque a empresa vem expandindo seus serviços e os consumidores têm que estar certos que chegarão, efetivamente, onde precisam ir”.
No Brasil, nem em sonho
No Brasil, os AVs não habitam nem os sonhos dos motoristas. Por aqui, os veículos elétricos (EVs) ainda engatinham e imaginar um serviço como o da Cruise, no Rio de Janeiro, por exemplo, seria até engraçado diante do leque de possibilidades criminosas, da depredação (crime de dano) ao furto, que a criatividade do brasileiro é capaz de pôr em prática. Mas na terra do Tio Sam, onde a economia liberal é que dita as regras, a falta de uma regulação para o setor já causa prejuízos. De acordo com a consultoria McKinsey & Co, nos últimos 12 anos foram investidos US$ 160 bilhões (o equivalente a R$ 0,8 trilhão!), mas o transporte autônomo de passageiros ainda opera exclusivamente em programas de teste. “Grandes empresas assumiram compromissos com seus investidores, mas tanto a complexidade dos AVs foi subestimada, quanto as capacidades dos próprios desenvolvedores foram superestimadas”, avalia o presidente da Volvo Autonomous Solutions, Nils Jaeger.
Só no segundo semestre de 2022, a Ford perdeu mais de US$ 800 milhões (o equivalente a R$ 4 bilhões) com o fechamento da Argo AI. “O transporte autônomo onipresente ainda está longe da realidade”, avalia a sócia da McKinsey & Co e responsável pela consultoria deste setor, Emily Shao. “Estamos a pelo menos uma década de distância do cenário imaginado e, até lá, muitas empresas vão falir ou serão adquiridas por grupos maiores”, acrescentou. A Aurora Innovation, por exemplo, reportou perdas de US$ 1,2 bilhão (o equivalente a R$ 6,4 bilhões), no ano passado. Fora os problemas financeiros, também existem aqueles ao tráfego: a Cruise teve que desfazer, “manualmente”, um engarrafamento provocado por táxis autônomos que fecharam um cruzamento, na Califórnia.
“Estamos falando de um sistema em que cada nova geografia, cada alteração de trânsito, deve ser mapeada, testada e validada. As regiões metropolitanas seguem crescendo e ainda não existem soluções para contornar este movimento urbano”, pontua Emily.
Para a Daimler Truck, dona da marca de caminhões Freightliner, o transporte rodoviário “hub-to-hub” é o que apresenta melhores resultados, no que tange à automação. “Neste modelo, um motorista humano leva a carga até um ‘hub’, uma estação rodoviária, onde plataformas autônomas assumem o transporte até outro ‘hub’, onde outro motorista humano finaliza a entrega”, detalha o CEO da companhia, Martin Daum. Para ele, a operação de caminhões totalmente autônomos neste modelo deve ganhar força, a partir de 2024. “Nos próximos dez anos, os ‘hubs’ vão se popularizar, nos EUA. Mas aventurar-se fora deste sistema é um risco que ninguém irá assumir, tão cendo”, avalia Daum.