Brasileiros gastaram R$ 605 bilhões com carro em 2022, mais do que com alimentação
O negacionismo se define pelo desprezo que certas pessoas têm, sem nenhum fundamento exato ou histórico, de fatos cientificamente provados e comprovados. Mas em que ponto isso se aplica ao universo automotivo?
Bom, o negacionismo se apoia na irracionalidade, na rejeição de ideias basilares, irrefutáveis, em prol de radicalismos e controvérsias, como forma de o sujeito evitar o desconforto psíquico que a realidade impõe a todos, causando um grande ressentimento, ou ao seu rebaixamento como consumidor pela perda do poder de compra, no caso do mercado de automóveis. “Hoje, o brasileiro gasta mais com seu automóvel do que com alimentação”, destaca o coordenador do iPC Maps, relatório anual do Índice de Potencial de Consumo, Marcos Pazzini. De acordo com o iPC Maps de 2022, o setor sugou quase R$ 605 bilhões das famílias, um aumento de 11% em relação ao período anterior e um indicativo de distanciamento entre o sonho do zero-quilômetro e a realidade. “O transporte por aplicativos e os serviços de entrega são, atualmente, a única alternativa para quem perdeu o emprego e, também, para muitos trabalhadores recomporem sua renda”, complementa Pazzini. Somado à crise dos semicondutores e à queda na produção por causa da pandemia, isso inflacionou e segue inflacionando os preços dos modelos zero-quilômetro, que estão inacessíveis.
Sem ter condições de adquirir um 0k, o sujeito se refugia em um negacionismo à brasileira: ele refuta os avanços tecnológicos e no campo da segurança dos EVs, a mudança do eixo produtivo global – dos Estados Unidos para a China – e, principalmente, a virada da eletromobilidade. Trata-se de um quadro psíquico compreensível, na medida em que estes fatores, combinados, criam um verdadeiro abismo entre o poder de compra do cidadão médio, principalmente do jovem, e o valor de aquisição de um carro novo – lembrando que, hoje, um Renault Kwid com a mesma configuração de um veículo do século passado, não sai por menos de R$ 70 mil. “A negação é um juízo e, basicamente, trata-se do confinamento no juízo de valor como forma de fugir do juízo de existência. É uma questão de saúde mental, porque o negacionismo concentra a discussão nos valores, ‘isto, sim; aquilo, não’, evitando a realidade”, explica o psicanalista Christian Dunker, titular do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP).
Da mesma forma que ocorre com o terraplanismo, a negação do Holocausto, da eficácia das vacinas e do aquecimento global, com as teorias conspiratórias em relação à Aids e à Covid, que são exemplos clássicos do negacionismo, o desvio cognitivo também se fundamenta em polêmicas, na seara automotiva. “A substituição do combustível fóssil por novas energias é uma questão superada, incontestável, já que a União Europeia tem uma meta de zerar a emissões de carbono, até 2050”, pontua presidente-executivo (CEO) do ERM Group, maior consultoria global de sustentabilidade, Tom Reichert. “A descarbonização ocorrerá de forma cada vez mais rápida, de agora para frente, e a fase de negação acabou”, sentencia Reichert. A maior prova de que este é um movimento sem volta está na capitalização das principais empresas do setor.
Hoje, Tesla (valor de mercado de US$ 612,6 bilhões) e BYD (valor de US$ 113,3 bilhões), ambas marcas focadas em EVs, são mais valiosas do que os grupos Toyota, Mercedes-Benz, Volkswagen, BMW, General Motors, Ford, Stellantis, Ferrari, Honda e Hyundai, juntos. Já a CATL, titã chinesa e maior fornecedora de baterias automotivas do mundo, tem um valor de mercado (US$ 163 bilhões) 3,2 vezes superior ao da Ferrari, 11 vezes maior que o da Volvo e quase 13 vezes maior que o da Renault.
Paixão negacionista
Apesar da exatidão da Matemática, a fase de negação parece ter acabado só para norte-americanos, europeus, chineses e japoneses, porque, no Brasil, o negacionismo se tornou a maior expressão da paixão nacional por automóveis. Na Ásia, Europa e Estados Unidos, novas leis e um pacote de mais de US$ 770 bilhões (o equivalente a estratosféricos R$ 4 trilhões) aceleram a virada de eletromobilidade, mas tanto esta cifra quanto os mais de 20 anos de desenvolvimento tecnológico que envolvem a maior cadeia produtiva do planeta são desconstruídos com frases estultas, obtusas como: “só pode ser brincadeira”, “parece piada”, “jamais um EV chinês será melhor que meu Gol bolinha”, “imagina um carro elétrico daqui 15 anos”, “quero distância de carro elétrico”, “incrível essa narrativa” e por aí vai. Obviamente e seguindo o script negacionista, as críticas oriundas do ressentimento nunca vêm acompanhadas de argumentos técnicos ou comprovações científicas – são palavras ao vento. Neste ponto, o psicanalista Christian Dunker, titular da USP, alerta que há o negacionismo clínico, “que chega a um estágio delirante”.
Para a professora da área de ecologia da Universidade de Brasília (UnB) e membro da Academia Brasileira de Ciências (ABC), Mercedes Bustamante, o negacionismo automotivo é insuflado tanto pelas novas mídias como por veículos de comunicação tradicionais, que “pintam” os EVs, principalmente os chineses, como inseguros e ineficientes. “Quando se fala em controlar a poluição ou tributar as emissões de carbono, há uma grande pressão dos produtores de petróleo. É isso que alimenta o negacionismo climático que, em última instância, espelha o negacionismo automotivo. Então, a questão climática é estigmatizada como uma pauta do comunismo, quando, na realidade, o aquecimento global afeta a humanidade como um todo, independentemente de orientação política”, pondera a especialista. “E isso não é uma coisa nova: Galileu Galilei sofreu com o negacionismo científico de sua época – séc. XVI – por defender que o Sol era o centro de nosso sistema planetário”.
Mas quais são os “sintomas” mais evidentes do negacionismo automotivo?
Desqualificação e saudosismo
O primeiro e mais evidente é a desqualificação da eletromobilidade. O negacionista automotivo trata a revolução dos EVs como um “modismo” fadado ao fracasso ou uma “enganação”, uma “brincadeira”, algo que “não vai dar em nada”, ignorando que são as regulações de mercado – leis, normas e portarias – que determinam o que será descontinuado e que poderá ser comercializado, nos mais variados mercados. “Há um contorno financiado, organizado em um ambiente de polarização política. A indústria do petróleo arrecada grupos para gerar dúvida, confundir as pessoas e distorcer estatísiticas”, sublinha Mercedes. O Painel Intergovernamental para Controle Climático (IPCC), das Nações Unidas, aponta que, entre 2011 e 2011, houve um aumento médio nas temperaturas dos continentes de 1,6 grau centígrado; então, se o leitor responde este fato com uma afirmação do tipo “o clima já mudou, no passado”, está usando um argumento negacionista.
O segundo sintoma do negacionismo automotivo é renegar o avanço das montadoras chinesas. Para os negacionistas, carros convencionais e EVs feitos na China são “porcaria”, que não querem “nem de graça”. Bom, o negacionista costuma agir como se tivesse a situação financeira de um executivo de multinacional e pós-doutorado em universidade estrangeiras, mas desconhece o básico do setor automotivo, como a China ser o maior mercado do planeta (inclusive de EVs, com 22,1 milhões de unidades em 2022, contra 10,7 milhões dos Estados Unidos) e o segundo maior exportador (inclusive de novas tecnologias). Em termos qualitativos, os estudos do J. D. Power também mostram que as marcas chinesas – a China é o país com maior número de montadoras nacionais, estatais e privadas – são as que mais evoluem. Já em termos de competitividade, têm, hoje, veículos 35% mais baratos e 3,5 vezes mais econômicos que os japoneses e sul-coreanos.
O terceiro e último sintoma que listamos é saudosismo passional, o culto de modelos ultrapassados, como o Chevrolet Opala e o Volkswagen Gol, para citar apenas dois exemplos, como se a engenharia automotiva das décadas de 60 e 70 fossem definitivas, perpétuas – apenas para efeito de comparação, coloque lado a lado Fórmula 1 da década de 70 e outro, atual. “Há um ressentimento em relação aos especialistas, devido ao fato de o negacionista se achar mais inteligente, já que se sente capaz de vencer uma discussão ideológica. Na verdade, ele constrói uma barreira em relação à formação verdadeira, porque é incapaz de avaliar evidências e dá, apenas, respostas leigas às questões”, explica o professor da Escola Naval de Guerra norte-americana, Tom Nichols, autor de “The Death of Expertise: The campaign against established knowledge and why it matters” (“A Morte da Expertise: a campanha contra o conhecimento”, em tradução livre), publicado pela Universidade de Oxford.
Mas qual seria, afinal de contas, o problema em ser um negacionista automotivo?
“As fortes convicções dos negacionistas são enraizadas em verdadeiros delírios”, esclarece o pesquisador da Universidade de Boston e professor de ética em Harvard, Lee McIntyre. E como se deve imaginar, uma vida delirante trará, mais cedo ou mais tarde, problemas de convivência insuperáveis que atingirão a estrutura familiar e as relações sociais – afinal, não há namorada, patrão, vizinho ou parente que suporte uma pessoa alucinada, desvairada. “Não escolhemos, aleatoriamente, aquilo em que queremos acreditar com base em delírios e, depois, procuramos evidências para fundamentar esses desatinos. Isso é o oposto da ciência”, pondera McIntyre em seu livro “The Scientific Attitude: defending science from denial, fraud, and pseudoscience” (“A Atitude Científica: defendendo a Ciência da negação e da fraude”).
E se o leitor está identificando alguém ou a si próprio como um negacionista automotivo, o mestre em Estudos Europeus pela Universidade de Groningen (Países Baixos) e internacionalista, Uriã Fancelli, faz uma advertência: “Os negacionistas não se consideram negacionistas. Eles se consideram, apenas, pessoas críticas, mas são picaretas que agem como donos da verdade. Há até mesmo aqueles que, intimamente, não acreditam nas próprias mentiras, porém empregam o negacionismo para manipular as opiniões dos outros. Ignoram fatos, têm uma visão imutável do mundo e nenhuma prova jamais é suficiente para que mudem de ideia. É aí que mora o perigo”, alerta Fancelli.