Medida pode reprovar veículos e movimentar cifra de R$ 50 bilhões

O que deve impulsionar a votação do projeto de lei que se arrasta no Congresso, desde 2001, são as cifras por trás das vistorias veiculares obrigatórias: nenhuma delas sairia, hoje, por menos de R$ 250 o que, multiplicado pela frota circulante brasileira de mais de 100 milhões de veículos, bateira na casa dos R$ 50 bilhões anuais – isso, sem contar o custo de reparo/regularização dos itens reprovados – CRÉDITO – FOTO GOODCAR/DIVULGAÇÃO com licença para uso editorial

Não há como negar que a flexibilização para obtenção da carteira de habilitação (CNH), que promete baratear o processo em até 80%, e a isenção do Imposto sobre Propriedade de Veículo Automotor (IPVA) para automóveis de passeio e comerciais leves com mais de 20 anos foram bem recebidas pelos brasileiros. O que pouca gente se deu conta é que as benesses apenas preparam o terreno para arrecadações bilionárias. É que, no caso da CNH, se apenas metade dos 20 milhões de brasileiros que dirigem sem habilitação regularizarem sua situação, só nos próximos quatro anos haveria uma injeção de R$ 7,5 bilhões para os governos estaduais e federal, ao mesmo tempo em que retorna à pauta legislativa a inspeção veicular obrigatória – um pente-fino em todos equipamentos obrigatórios, na estrutura, documentação, emissões de poluentes e ruído. Ambas as medidas combinam populismo e liberalidade, escamoteando nos benefícios para os candidatos à CNH e para quem possui um automóvel na faixa da “maioridade” uma contraposição ao próprio Programa Nacional de Mobilidade Verde e Inovação (Mover), que visa à descarbonização da frota brasileira, e às regras que adotam países mais ricos e desenvolvidos, dos Estados Unidos à China, passando pela União Europeia (EU).

No “Primeiro Mundo”, a tributação do setor dos transportes é uma das ferramentas mais importantes para gerar mudanças comportamentais e isenções desempenham um papel fundamental na transição para os veículos elétricos (EVs). Naquilo que pareceu colocar o Brasil em sinergia com esses países, em julho deste ano, o governo federal criou o IPI Verde, zerando o Imposto sobre Produtos Industrializados para compactos que emitem menos de 83 gramas de gás carbônico (CO₂) por quilômetro, somam mais de 80% de materiais recicláveis e têm fabricação nacional – a iniciativa, válida até dezembro de 2026, na verdade não zerou o IPI, que parte de uma alíquota base de 6,3%, para carros de passeio, e 3,9%, para comerciais leves, mas estimulou a indústria doméstica.

Ocorre que, em sentido oposto, a isenção do IPVA aprovada pela Câmara dos Deputados desestimula a renovação da frota, desobrigando o percentual circulante que mais polui e mais cresce – só no início desta década, o número de veículos com mais de 20 anos de uso cresceu de 2,5 milhões de unidades para 3,6 milhões. Pior, o mau estado de conservação é causa de 30% dos acidentes rodoviários no Brasil, aponta a Polícia Rodoviária Federal (PRF), da mesma forma que os veículos com até 15 anos de uso respondem por quase 20% dos acidentes com vítimas fatais. O Sindicato Nacional da Indústria de Componentes para Veículos Automotivos (Sindipeças) alertou, no ano passado, que a frota brasileira envelheceu dois anos e três meses, só na última década: de uma idade média de 8 anos e 1 mês, em 2014, para 10 anos e 4 meses em, 2024

“A uma relação idade/risco, mas o risco está mais associado ao estado de conservação do veículo do que com seu ano de fabricação. Ocorre que o motorista não troca seu carro por um mais novo por falta de condição financeira e, na prática, o mesmo dinheiro que falta para a renovação também falta para a manutenção preventiva”, comenta o professor do programa de Pós-Graduação em Transportes da Universidade de Brasília (UnB), Paulo César Marques da Silva. “Portanto, o risco não cresce só com o aumento da idade do automóvel, mas pela falta de precaução do seu proprietário”, acrescenta.

A frota em circulação no Brasil é a mais velha, desde 1995, e, apenas para o leitor ter uma ideia, enquanto um compacto – como o Ford Fiesta – com dez anos de uso paga 1.500 euros (o equivalente a R$ 6.100) anuais de licenciamento, na Bulgária, e astronômicas 41 mil coroas (R$ 34 mil), na Dinamarca, o Fiesta nacional de segunda geração, produzido a partir de 1996, estará isento de IPVA, já a partir do ano que vem.

“Oportunamente”

A bem da verdade, a isenção do IPVA para veículos com mais de 15 anos de fabricação já ocorria em no Amazonas, Bahia, Ceará, Distrito Federal, Espírito Santo, Goiás, Maranhão, Pará, Paraíba, Piauí, Rio de Janeiro, em Rondônia e Sergipe; e para veículos com mais de 20 anos no Acre, Mato Grosso do Sul, Paraná, Rio Grande do Sul e em São Paulo – na Amapá, Rio Grande do Norte e em Roraima o imposto não era cobrado de carros com dez anos de fabricação. Portanto, só serão beneficiados de verdade os contribuintes de Minas Gerais, Santa Catarina e do Tocantins, onde os modelos precisavam ter mais de 30 anos de produção e, no caso de Minas, possuírem valor histórico certificado pela placa preta.

Quase ninguém percebeu, mas a necessidade de implementação da Inspeção Técnica Veicular (ITV) e da Inspeção de Segurança Veicular (ISV) voltou à pauta, “oportunamente”, poucas semanas antes da flexibilização da CNH e da isenção do IPVA. “O momento é propício para intensificar a mobilização política em torno da pauta e precisamos, agora, caminhar com mais firmeza por meio do Congresso Nacional”, afirmou o coordenador da Câmara Brasileira do Comércio de Peças e Acessórios para Veículos (CBCPAVE) e presidente do Sincopeças, Ranieri Palmeira Leitão, durante a segunda reunião anual do setor, em Brasília (DF). Dados setoriais apontam que 30% dos acidentes registrados todos os anos no país, com até 40 mil mortes, decorrem de falhas em peças, falta de manutenção ou ausência de inspeção técnica.

A implementação da ITV e da ISV é vista como medida essencial e uma proposta será apresentada diretamente aos congressistas, no próximo mês de maio. “Temos que unir forças, precisamos mostrar que a medida vai salvar vidas e fortalecer o setor. É hora de agir com união e propósito”, conclamou Leitão. Mais do que a preocupação com segurança viária, o que deve impulsionar a votação do projeto de lei que se arrasta no Congresso, desde 2001, são as cifras por trás das vistorias: nenhuma delas sairia, hoje, por menos de R$ 250 o que, multiplicado pela frota circulante brasileira de mais de 100 milhões de veículos, bateira na casa dos R$ 50 bilhões anuais – isso, sem contar o custo de reparo/regularização dos itens reprovados.

A verdade é que, da forma que a isenção do IPVA deixa o terreno, a inspeção prevista no art. 104 do Código de Trânsito Brasileiro (CTB) ressurge como única solução para se fazer o controle de emissões e a avaliação das condições de segurança dos modelos com mais de 20 anos de idade. “Países que adotam a inspeção obrigatória reduzem o número de acidentes em até 15%”, destaca o professor do Departamento de Engenharia Mecânica da UnB, Antônio Manoel Dias Henriques. Hoje, a única inspeção que existe é a feita pelos Departamentos Estaduais de Trânsito (Detrans), para transferência de propriedade, o que não avalia nem emissões e nem a segurança efetiva.

Vale ressaltar que, caso seja reprovado na ITV ou na ISV, o veículo terá um prazo de adequação – provavelmente, de 30 dias – para seu regular licenciamento. Vencido este prazo, todas as taxas terão que ser pagas, novamente, para novas vistorias. Não é preciso ser matemático para imaginar que, na ponta do lápis, a isenção do IPVA será recobrada em dobro ou em triplo…