Pesquisa da SAE Brasil mostra percepção sobre crise climática descolada de atitudes individuais

Muito se fala e se conhece, mas pouco se faz. Esta é a conclusão de uma pesquisa sobre transição energética coordenada pelo engenheiro Camilo Adas, conselheiro de Tecnologia e Transição Energética na SAE Brasil, entidade internacional que reúne engenheiros especializados em mobilidade automotiva. O estudo foi apresentado no Congresso SAE Brasil, no início de outubro, e outra apresentação, mais completa, será feita na COP 30, a Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas, de 10 a 21 de novembro em Belém, PA.

O principal diferencial desta pesquisa está no público: os pouco mais de 1 mil respondentes são, em sua vasta maioria, engenheiros ou profissionais de ciências exatas empregados no setor automotivo, de combustíveis ou professores e pesquisadores acadêmicos, a maior parte com mais de 45 anos e, mais importante, 73% deles dizem conhecer o tema transição energética acima da média da população em geral.

São, portanto, profissionais bem informados a respeito da crise climática causada pelo aumento das emissões de gases de efeito estufa, entendem que para conter o problema é necessário levar adiante a transição energética, com a substituição de fontes de energia fóssil por renováveis com baixas emissões de carbono. Mas, descendo do nível teórico para o prático, porcentual relevante dessas pessoas não toma atitudes práticas nesse rumo.

 

Preferência por gasolina no flex

Esta conclusão pode ser medida em uma das mais comezinhas ações do cotidiano: encher o tanque em um posto de combustível. Segundo a pesquisa 57% dos respondentes têm carros flex bicombustível etanol-gasolina, outros 5% usam modelos híbridos flex. Mas na hora de abastecer 29% dos proprietários de veículos flex preferem usar só gasolina, enquanto 16% adotam o combustível fóssil em seu híbrido flex.

Este resultado não surpreende: até as empresas que fabricam 100% de carros flex no Brasil abastecem suas frotas predominantemente com gasolina. Fato curioso, alguns carros enviados por fabricantes para as diversas reuniões do G20, em 2024, no Rio de Janeiro, RJ, foram adesivados com a propaganda “Brazilian Ethanol”, com a intenção de mostrar a solução ao mundo, mas pelo que se soube muitos destes veículos chegaram lá rodando com gasolina.

Voltando à pesquisa, 23% dos que têm carros flex escolhem etanol ou gasolina a depender do preço, o que for mais barato também considerando o consumo mais elevado do biocombustível, 22% sempre abastecem com etanol e 8% levam em conta a autonomia maior do derivado de petróleo. Apenas 17% colocam na balança vários fatores combinados, como autonomia, preço e impacto ambiental.

Ou seja: nenhum dos bem-informados proprietários de carros flex que responderam à pesquisa colocam o impacto ambiental como fator único de sua decisão na hora de escolher o combustível que vai no tanque.

O mesmo tipo de atitude se repete no ambiente profissional, em que para 67% dos respondentes o preço/custo é o principal fator que guia as decisões sobre mobilidade, transporte ou logística nas empresas em que trabalham, para 47% o mais importante é o desempenho e autonomia do veículo, 41% apontam a disponibilidade de combustível ou infraestrutura de abastecimento, enquanto o impacto ambiental da fonte energética escolhida aparece só no quarto lugar de importância, com 39% das respostas.

As atitudes práticas pessoais e profissionais apontadas na pesquisa contradizem a percepção de quase 70% dos pesquisados de que a transição energética é um tema urgente. Mas não é menos relevante que porcentual significativo de pessoas com bom conhecimento técnico avaliem que o tema é pouco prioritário na vida pessoal ou nas empresas em que trabalham.

 

Biocombustível é solução pouco utilizada

Outro descasamento entre atitudes práticas e percepções apontado na pesquisa é que a grande maioria avalia que os biocombustíveis, etanol e biodiesel, são a melhor solução de transição energética desfossilizada para o Brasil, seguida em segundo lugar por veículos híbridos, em terceiro pelos movidos por hidrogênio verde ou de baixo carbono, e apenas em quarto pelos elétricos a bateria. O uso de HVO – óleo vegetal hidrogenado que substitui o diesel fóssil com as mesmas características – surge em quinto lugar e, em sexto, é indicada a utilização de combustíveis fósseis com mitigação de emissões, como a captura de carbono.

A percepção sobre biocombustíveis é bastante óbvia, pois o Brasil é o único país do mundo com esta solução já viável e utilizada, considerando que de 80% a 90% as emissões de CO2 do etanol ou biodiesel são reabsorvidas na própria cadeia de produção destes energéticos renováveis.

Ainda assim são poucos os que valorizam o benefício ambiental, tendo em vista que cerca de 80% dos 40 milhões de veículos da frota nacional são flex e apenas 30% deles utilizam só etanol, o E100, para rodar, os outros 70% usam o E30, a gasolina misturada com 30% de etanol anidro.

Apesar de não utilizar todo o potencial da principal solução de desfossilização que o País já oferece, 59% dos pesquisados disseram ter a visão pessoal de que o Brasil tem o papel de líder global da transição energética nos próximos cinco a dez anos, mas para nada irrelevantes 28% o País será um seguidor de tecnologias encubadas em países desenvolvidos, e para 8% existem outras prioridades à nação.

Já na vida profissional, nas empresas em que trabalham, 34% disseram que o Brasil é visto como país com potencial de protagonismo na transição energética, mas 26% avaliam que existe baixa atuação prática sobre o tema e para 15% o País continuará seguindo tecnologias desenvolvidas no Exterior.

 

Bolha da transição

Camilo Adas, o idealizador da pesquisa, avalia que a transição energética, apesar de muito falada e discutida, ainda não começou de fato. Apesar das muitas iniciativas divulgadas para conter o aquecimento global, as emissões de gases de efeito estufa continuam a crescer. Até agora a ações tomadas não são suficientes para mudar o curso da crise climática e dos eventos extremos que assolam o planeta com força destruidora cada vez maior, como furações, enchentes, estiagens e incêndios florestais.

“Não há indicação clara de que a transição energética esteja, de fato, começando”, enfatiza o engenheiro. Ele cita dados da IEA, a Agência Internacional de Energia: o mercado global de energia deve girar, este ano, a fantástica soma de US$ 11 trilhões, mas apenas 20% deste faturamento, algo como US$ 2,2 trilhões, serão investidos em fontes de energia limpa, desfossilizada, enquanto os combustíveis fósseis, derivados de petróleo ou gás natural, ainda vão receber US$ 1,1 trilhão em investimentos.

Na velocidade atual, calcula Adas, os investimentos não são suficientes para tornar viável a substituição dos combustíveis fósseis, que ainda representam cerca de 80% de toda energia consumida no mundo: “Sinto que vivo na bolha da transição energética. Falo disto e discuto o assunto o tempo todo com líderes da indústria que participam de eventos comigo no palco. Todos concordam sobre a urgência de neutralizar emissões fósseis, mas na prática quem tem recursos financeiros e estrutura não faz o suficiente para que isto aconteça”.

 

Psicologia da transição energética

Adas afirma que ainda não tem elementos científicos que justifiquem o descasamento do discurso com a prática no caso da desejada transição energética do setor automotivo – esta será uma segunda fase de sua pesquisa. Mas ele vê indícios de explicações na psicologia humana, liderada pelo comportamento clássico da falta de engajamento ou de identificação com certas causas.

“As pessoas não acham que é problema delas e terceirizam a questão para um ente impessoal: ‘Não sou responsável e quem resolve é a empresa, o banco, o governo ou a sociedade, alguém vai dar um jeito.’”

Ao mesmo tempo Adas aponta que todos precisam suprir necessidades como comer, descansar, trabalhar e se locomover, e a energia é necessária para fazer tudo acontecer. “Desde que todas essas necessidades estejam supridas ninguém pergunta ou se importa de onde vem a energia para sustentar tudo. A sociedade busca seu progresso, sua evolução, e nos últimos 150 anos isto foi feito com base no exponencial aumento do uso de energia fóssil, como carvão, petróleo e gás natural. É difícil mudar isso”

Reforçando o fato de a transição energética não estar rodando na velocidade necessária para aplacar a crise climática – que para alguns simplesmente não existe –, Adas indica que uma grande campanha de esclarecimento encabeçada pelos governos do mundo deveria ser feita, com muita repetição de fatos e soluções, “pois será pior se esperarmos para aprender pela dor, como aconteceu nas enchentes do Rio Grande do Sul”.

Neste sentido os governos têm muito a contribuir com legislações e regulamentações que imponham metas de redução ou anulação de emissões, sem no entanto forçar o uso de tecnologias inviáveis – como acontece com a União Europeia que impôs a substituição de carros a combustão por elétricos criando desemprego, investimentos sem retorno e problemas econômicos.

Adas aponta que a transição energética, para dar certo, precisa ser um desejo das pessoas e o governo pode criar esse ambiente com limitações e incentivos, até que o comportamento desejado seja assimilado pelo tecido social e se torne um costume sem questionamentos – como já aconteceu, por exemplo, com a obrigação do uso de cinto de segurança ou a recomposição da camada de ozônio após a proibição do uso do gás CFC em sistemas de refrigeração e aerossóis.

O tempo do clima inóspito está correndo rápido e a humanidade está ficando sem tempo.