Apesar da hegemonia entre híbridos plug-in e EVs, são os modelos tradicionais que respondem por 75% dos envios de 6,5 milhões de unidades

Enquanto União Europeia, Estados Unidos e países da América Latina se concentram na ameaça dos veículos eletrificados, as marcas tradicionais enfrentam uma concorrência cada vez maior de carros de passeio e comerciais leves ‘made in China’ equipados com motores a combustão interna, que representam mais de 75% das exportações asiáticas, desde 2020: envios das marcas detrás da Grande Muralha devem superar os US$ 130 bilhões (o equivalente a R$ 700 bilhões), em 2025 – CRÉDITO – Imagem gerada por IA, com licença para uso editorial
A hegemonia das marcas chinesas entre os híbridos plug-in e EVs é inconteste, mas o que poucas pessoas se dão conta é que indústria detrás da Grande Muralha já conquistou metade do mercado interno de muitos países, superando as antigas montadoras também nas vendas de modelos equipados com motor a combustão. “Enquanto União Europeia, Estados Unidos e países da América Latina se concentram na ameaça dos veículos eletrificados, criando uma guerra tarifária para compensar os subsídios chineses, as marcas tradicionais enfrentam uma concorrência cada vez maior de carros de passeio e comerciais leves ‘made in China’, que representam mais de 75% das exportações asiáticas, desde 2020”, destaca o presidente-executivo da plataforma de consultoria estratégica e investimento Automobility, Bill Russo. Somando todos os tipos de motorização, as exportações chinesas de automóveis devem superar os US$ 130 bilhões (o equivalente a R$ 700 bilhões), em 2025. “Estamos falando de remessas anuais sextuplicadas, que saltaram de um milhão para 6,5 milhões unidades”, sublinha Russo.
O Brasil, por exemplo, taxa veículos chineses com uma constelação de impostos: tarifa de até 70% só com Impostos sobre Produtos Industrializados (IPI) e de Importação, mais até 20% de Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS), dependendo do Estado, só para começar. Alíquotas de 28% para híbridos plug-in, de 30% para híbridos convencionais e 35% para EVs – a partir de 2026 – e modelos a combustão são outro complicador, porque elas são progressivas e vêm subindo. O problema é que a farra tributária já não garante um mercado cativo para as antigas montadoras que, só nos últimos cinco anos, viram a fatia do bolo abocanhada pelas marcas chinesas crescer de 1,5% para mais de 10%.
“Eu respeito as marcas chinesas como concorrentes e elas são bem-vindos à festa”, disse o CEO da Volkswagen sul-americana, Alexander Seitz. “Não temos medo dos chineses”, acrescentou Seitz, fingindo não saber que foi exatamente a concorrência chinesa que erodiu a posição da VW atrás da Grande Muralha, forçando a companhia a uma inédita e dispendiosa reestruturação, potenciais fechamentos de fábricas e uma corrida desesperada rumo a eletrificação de sua gama, impactando diretamente nos lucros e na remuneração de seus acionistas (a capitalização de mercado da Volks derreteu 60%, nos últimos 55 meses).
Na verdade, o aumento nas exportações chinesas de modelos equipados com motores a combustão é impulsionado pelos mesmos subsídios e políticas governamentais que pulverizaram seus EVs, globalmente, e arruinaram os negócios de gigantes como a própria VW, na China. “O país tornou-se o maior exportador de automóveis do mundo em volume, entrando em mercados emergentes justamente com modelos a combustão. E aqui cabe destacar a política do Partido Comunista chinês, porque entre os maiores exportadores estão gigantes estatais, como SAIC, BAIC, Dongfeng e Changan que, há pouco tempo, dependiam de joint ventures com montadoras ocidentais para obter conhecimento técnico”, lembra Bill Russo, da Automobility.
Parcerias e estatais
Para quem não sabe como a indústria automotiva chinesa cresceu e dominou o mundo, essas parcerias começaram na década de 80 – portanto, a menos de 50 anos – com uniões forçadas por Pequim como condição para que marcas estrangeiras tivessem acesso ao mercado doméstico. Ocorre que, ao contrário do que ocorre no Brasil, onde as transnacionais subjugam o governo tupiniquim, a ascensão de fabricantes chineses inovadores que apostaram nos EVs (liderados pela BYD) canibalizou as vendas dessas joint ventures que, em pouco tempo, ficaram à deriva. Daí, enquanto as vendas anuais da parceria entre SAIC e General Motors (SAIC-GM) caíram de mais de 1,4 milhão de unidades, em 2020, para 435 mil unidades, no ano passado, as exportações da SAIC – não confundir com a SAIC-GM – superarão um milhão de unidades neste ano.

Enquanto União Europeia, Estados Unidos e países da América Latina se concentram na ameaça dos veículos eletrificados, as marcas tradicionais enfrentam uma concorrência cada vez maior de carros de passeio e comerciais leves ‘made in China’ equipados com motores a combustão interna, que representam mais de 75% das exportações asiáticas, desde 2020: envios das marcas detrás da Grande Muralha devem superar os US$ 130 bilhões (o equivalente a R$ 700 bilhões), em 2025 – CRÉDITO – Imagem gerada por IA, com licença para uso editorial
Outro exemplo é a – também estatal – Dongfeng que, em cinco anos, quadruplicou suas exportações para 250 mil unidades, concomitantemente a uma “espiral comercial descendente” de suas joint ventures com as japonesas Honda e Nissan, no mercado chinês. “O fato de sermos uma companhia estatal e termos apoio de Pequim é fundamental e não há dúvida de que, por enquanto, os modelos a combustão estão vendendo mais em mercados secundários, como América Latina, Brasil, Europa Oriental e África”, pontua o diretor da subsidiária centro-europeia da montadora, Jelte Vernooij.
Na verdade, as gigantes chinesas estão apenas esperando o fortalecimento da infraestrutura de recarga nestes mercados, para garantirem o domínio completo entre híbridos plug-in e EVs. “Este é o plano, a longo prazo. Enquanto isso, os fabricantes chineses estão instituindo suas marcas, globalmente, oferecendo aos clientes um leque de produtos capaz de atender demandas pontuais de cada região e cada país”, complementa Vernooij.
Neste sentido, importante frisar que apenas duas das dez maiores exportadoras de automóveis instaladas atrás da Grande Muralha focam híbridos plug-in e EVs: a norte-americana Tesla, que produz e vende mais na China do que nos EUA, e a BYD – que, hoje, está entre as duas maiores exportadoras.
“Fácil e acessível”
As exportações chinesas de veículos a combustão devem ultrapassar 4,3 milhões de unidades, no fechamento deste ano, representando 2/3 de todos os envios – ou seja, híbridos plug-in e EVs respondem por apenas 1/3 das exportações. A principal exportadora de automóveis da China é a Chery, cujas vendas globais dispararam de 730 mil veículos para 2,6 milhões, nos últimos cinco anos. A companhia, que possui acionistas estatais e privados, aumentou suas vendas externas anuais em cerca de um milhão de unidades, desde 2020, devido aos modelos a combustão, que representam 80% deste mix. E, frise-se, que dentre as dez maiores exportadoras chinesas de automóveis, encontram-se outras cinco gigantes estatais e dois fabricantes privados, Geely e Great Wall Motor (GWM), que também enviam mais modelos a combustão do que eletrificados.

Enquanto União Europeia, Estados Unidos e países da América Latina se concentram na ameaça dos veículos eletrificados, as marcas tradicionais enfrentam uma concorrência cada vez maior de carros de passeio e comerciais leves ‘made in China’ equipados com motores a combustão interna, que representam mais de 75% das exportações asiáticas, desde 2020: envios das marcas detrás da Grande Muralha devem superar os US$ 130 bilhões (o equivalente a R$ 700 bilhões), em 2025 – CRÉDITO – Imagem gerada por IA, com licença para uso editorial
“Temos condições industriais para atendermos qualquer demanda e o crescimento de nossas exportações são um indicador muito confiável do quão competitivo é o mercado doméstico chinês – de mais de 30 milhões de unidades anuais. As vendas externas são essenciais para o aumento de nossos volumes e se, hoje, elas se concentram em modelos a combustão, é porque este tipo de produto é mais fácil e acessível na maioria dos países”, explica o diretor europeu de marketing da Changan, Nic Thomas. “De fato, podemos ajustar nossa oferta para cada um desses mercados”.
Contrariando o destemido CEO da Volkswagen sul-americana, Alexander Seitz, executivos que ocupam os mais altos postos de comando de outras montadoras reconhecem, humildemente, que a ascensão das rivais chinesas representa uma séria ameaça competitiva. “Hoje, temos que nos concentrar na tecnologia – motorização – certa, a um custo justo”, afirma a CEO da General Motors, Mary Barra. A toda-poderosa da GM parece mais conectada à realidade do que Seitz, afinal, a companhia norte-americana figura na quinta posição do ranking mundial do setor automotivo, com uma capitalização de mercado de US$ 77 bilhões (o equivalente a R$ 415 bilhões, com alta de 35% nos últimos 12 meses), quatro posições à frente da VW, que perdeu 50% do seu valor só nos últimos quatro anos e, hoje, tem capitalização de mercado de menos de US$ 65 bilhões (R$ 350 bilhões).
Hoje, o Grupo Volkswagen, com mais de dez marcas, cerca de 100 fábricas em 27 países diferentes e mais de 680 mil colaboradores, vale menos que o banco brasileiro BTG Pactual.
Mercados emergentes
Na China, os incentivos governamentais para a indústria automotiva são muitos e um efeito ricochete dessa política é o excesso de capacidade instalada para produção de modelos a combustão. “O rápido crescimento dos híbridos plug-in e EVs, no mercado chinês, gerou ociosidade em linhas de montagem capazes de produzir até 20 milhões anuais de modelos equipados com motores a combustão. Isso porque, ao longo da última década, as políticas de Pequim incentivaram os fabricantes a construírem novas fábricas de EVs, ao invés de converter as já existentes. Os governos locais impulsionaram essa lógica com mais subsídios, competindo para atrair novas montadoras e gerar desenvolvimento”, explica Bill Russo, CEO da Automobility. “A ociosidade, por sua vez, aumenta custos e pressiona as montadoras a redirecionarem seus negócios para as exportações e é exatamente isso que estamos assistindo: a capacidade excedente dos chineses está sendo redirecionada para o resto do mundo”.
A consultoria AlixPartners prevê que as vendas externas das montadoras chinesas crescerão em quatro milhões de unidades anuais, até 2030, conquistando grandes fatias de mercado na América do Sul (Brasil, principalmente), Oriente Médio, África e Sudeste Asiático. “Se somarmos esse movimento ao crescimento esperado na própria China, maior mercado automobilístico do mundo desde 2009, as montadoras chinesas deverão controlar 30% da indústria automobilística global em cinco anos”, projeta o codiretor da consultoria para o mercado chinês, Stephen Dyer. “Governos locais chegam a preparar o terreno e construir as fábricas, permitindo que marcas se instalem ‘apenas com uma mala’. O resultado é uma supercapacidade de produção”, completa Dyer.
E o Brasil, assim como todos os mercados emergentes, terá cada vez mais modelos chineses em oferta.
A Inchcape, distribuidora automotiva por serviços marítimos e líder global, operando em mais de 40 mercados com quase 70 marcas, confirmou que a maioria dos novos contratos recentes com montadoras chinesas se destinam a estas regiões. “Eles adaptam suas exportações de modelos a combustão ao que cada mercado consegue absorver, sem impor seus EVs, e este pragmatismo criou novas frentes na batalha contra as antigas montadoras”, avalia o CEO da Inchcape, Duncan Tait.
Pesquisas da JATO Dynamics revelam que as novas marcas chinesas exportam veículos mais acessíveis para os países em desenvolvimento, roubando fatias de mercado cada vez maiores das gigantes ocidentais. “Grupos como Volkswagen, General Motors e Stellantis, que mantiveram boas participações no Brasil durante décadas, estão vulneráveis à onda de exportações chinesas. Os fabricantes tradicionais dormiram no ponto e, agora, estão pagando por isso”, comenta o analista automotivo da consultoria, Felipe Munoz. “A verdadeira batalha entre as montadoras chinesas e as antigas montadoras tradicionais não está acontecendo na Europa, nem nos EUA, mas nos mercados emergentes”, alerta.
No Brasil em que as marcas chinesas já abocanham mais de 10% das vendas de carros de passeio e comerciais leves, General Motors, Volkswagen e Ford formam o trio que mais perdeu participação, nos últimos 20 anos: a GM viu sua fatia 22,5% do bolo cair para menos de 11%, enquanto a VW encolheu de 21,5% para 17% e a Ford, que respondia por 12% do mercado brasileiro, ficou com um pedacinho de 2%, menos de a metade do que a BYD tem, atualmente.










