Aporte na nova fábrica alemã deixa claro que Brasil segue fora do radar produtivo global

O leitor adulto sabe que o setor automotivo é um dos pilares da indústria e que, por trás do lançamento de cada modelo, há um negócio muito rentável que distribui bilhões de dólares em dividendos para acionistas que não estão nem aí para quem compra um T-Cross por R$ 150 mil, financiando até a alma para adquirir um Polo maquiado de jipinho, ou para quem chora a despedida do Gol, como se um compacto tupiniquim fosse a quintessência da engenharia ou um ente querido. É exatamente por isso, por enxergar em uma montadora a representação da figura materna, que o brasileiro não consegue se livrar do subjugo e se reposicionar no xadrez produtivo global. Prova desta dependência lacaniana é o fato de a Volkswagen preparar a suspensão temporária de contratos de trabalho na sua fábrica de São José dos Pinhais (PR), não por coincidência onde o T-Cross é feito, ao mesmo tempo em que finaliza seu plano de investimentos de dois bilhões de euros (o equivalente a R$ 10,4 bilhões) em uma nova unidade, em Wolfsburg (Alemanha, distrito de Warmenau), onde só fará modelos elétricos (EVs) derivados da nova base SSP e com a qual pretende rivalizar tecnicamente com a norte-americana Tesla, em termos de qualidade e eficiência.

Enquanto, por aqui, a vassalagem vai deixar os operários cinco meses sem trabalho, no além-mar os planos são de expansão: “Vamos estabelecer um novo padrão de manufatura”, garantiu à agência Reuters o diretor de produção da VW, Christian Vollmer. O objetivo é rivalizar com a Tesla, que leva apenas dez horas para concluir a montagem de um Model Y em sua planta de Gruenheide, perto de Berlim, enquanto a Volks gasta até três vezes mais tempo para fazer seu ID.3 – que usa a base MEB que, por sua vez, será sucedida pela nova SSP. “Implementaremos as mais avançadas técnicas de estamparia, reduzindo em algumas centenas o número de partes/componentes. Hoje, nossa taxa de produtividade cresce a uma média anual de 5%. Replicando o tempo de dez horas por veículo, daremos um grande salto”, detalhou Vollmer.

Apenas para se ter uma ideia da defasagem “estratégica” das subsidiárias brasileira, argentina e mexicana, a Volkswagen anunciou, no ano passado, que iria aplicar R$ 7 bilhões (1,3 bilhão de euros) nos próximos cinco anos, em toda sua operação latino-americana. O programa, que não deve direcionar nem um décimo do dedicado à Alemanha para cada um destes três países, até 2028, não contempla a produção de nenhum EV e tem no futuro Polo Track sua grande “estrela” – um automóvel do passado que chega, ainda neste ano, como versão 2023 e preços na casa dos R$ 80 mil.

Na Europa, o Grupo VW e suas marcas detêm 25% de participação no mercado de veículos elétricos, 12 pontos percentuais a mais do que a própria Tesla. Mas se, por aqui, a Volks descansa nos braços de um povo “apaixonado por carros”, no Velho Continente, ela sabe que não há tanto ardor por parte dos consumidores. “Claro que estamos pressionados. Temos que dominar e ampliar a produção de EVs, já que não aceitaremos uma eventual derrota em nosso próprio território, quanto mais para uma marca norte-americana”, afirma o presidente-executivo (CEO) da companhia, Herbert Diess, completando que coordenar dois sistemas fabris, um de automóveis equipados com motores a combustão e outro, com modelos elétricos, é “um malabarismo”.

Transição

Enquanto investe alto para financiar a eletrificação de sua gama, a Volkswagen segue à risca a nova orientação industrial do setor: reduzir a oferta, simplificando as linhas, e agilizar a manufatura. “Não há dúvidas de que a lógica criada pela Tesla, que reduziu o número de componentes, tornando os EVs muito mais simples, chamou atenção de todo o setor”, aponta Evan Horetsky, sócio da McKinsey&Company, uma das consultorias de gestão mais influentes do mundo, responsável pela engenharia de produção da nova fábrica da Tesla, em Brandenburg. “O problema para as marcas tradicionais é que elas precisam de fazer sua transição para a eletromobilidade ao mesmo tempo em que têm que atender os pedidos atuais. Ou seja, elas não podem, simplesmente, parar de produzir carros com motores a combustão, porque são suas entregas que mantêm o negócio”.

Mas não se trata, apenas, de uma questão de arranjo produtivo. A Tesla, por exemplo, consegue fabricar um EV em apenas dez horas, porque, entre outros fatores, usam gigaprensas, capazes de trabalhar com carga de 6.000 toneladas. A estamparia, em Gruenheide, também produz 17 peças em menos de seis minutos. “É por isso que eles são tão rápidos”, explica CorySteuben, presidente da Munro& Associates, consultoria especializada em engenharia de produção que atua desde a área aeroespacial até o segmento naval. “Eles têm mais seis gigaprensas a caminho de suas linhas de montagem e, em breve, também produzirão as seções dianteiras de seus veículos com este tipo de ferramental”.

O especialista lembra que, em um passado recente, a BMW estudou a adoção de grandes seções estampadas em gigaprensas, mas desistiu da opção pelo fato de os custos mais altos de reparo dos veículos produzidos sob este sistema não compensarem a economia na montagem. “Aqui, temos uma grande sacada da Tesla: com o avanço dos modelos autônomos (AVs), espera-se uma redução nos acidentes mais graves. Portanto, os norte-americanos trabalham sob a perspectiva de que seus carros, quando alcançarem os Níveis 4 e 5 de automação, não necessitarão de grandes intervenções de funilaria, na hora do conserto”, projeta Steuben.

A italiana Idra, criadora da “Giga Press” (como foi batizada), não nega que Volks e Volvo são os fabricantes mais próximos da adoção do que chama de “megacasting” para suas futuras linhas. “Estamos falando de uma peça única, em alumínio, que substitui cerca de 60 partes separadas que, depois de montadas, formam um subconjunto. Na prática, isso representa uma economia de 40% no investimento com ferramental, além de reduções de 30% no gasto com energia elétrica e na massa da seção acabada, se comparada a um subconjunto em aço”, enumera o presidente-executivo (CEO) da companhia, Riccardo Ferrario, que investiu 1,8 milhão de euros (o equivalente a R$ 9,3 bilhões) para o desenvolvimento do equipamento. “Antes da Tesla, as marcas riam e seus executivos diziam que nunca faríamos isso funcionar”.

Hoje, a Idra tem sete gigaprensas em operação, cinco em instalação e outras dez em produção. “É uma ferramenta industrial que suporta pressões 50% maiores, que leva um ano para ser instalada e iniciar sua operação”, conta Ferrario. “Estampando as seções dianteira e traseira em duas peças únicas, você consegue suprimir 250 outras peças. Dentro da fábrica da montadora, isso economiza 200 metros de linha de soldagem robotizada, onde se faz a junção das partes”, garante ele. Especialistas ainda creem que é possível eliminar 300 destes e outros robôs, reduzindo o tempo de produção de um veículo em até três vezes. “Faço questão de frisar que este é, também, um processo de produção mais sustentável”, destaca Ferrario.

O leitor mais maduro e bem informado percebe claramente que, enquanto tudo isso se opera na Europa e, também, na China (onde as gigaprensas darão vida a microcarros da mesma classe do ForTwo, da Smart, com monobloco de peça única, ou seja, sem pontos de solda), o parque industrial brasileiro vai se desqualificando. Há menos de uma década, 12% da estrutura fabril das subsidiárias brasileiras tinha mais de 20 anos de uso; 28%, de 10 a 19 anos de uso, e 35%, de cinco a nove anos de uso – no ranking mundial de compra deste tipo de equipamento, o Brasil aparece atrás da Índia e do México. Diante deste quadro, indaga-se: afinal, como produzir um EV de segunda geração com maquinário tão ultrapassado, limitado à fabricação de populares para o Terceiro Mundo?

Sem uma resposta pragmática para esta questão, as expectativas são as piores possíveis…