Até no Brasil as vendas de elétricos cresceram; na Noruega, os EVs já respondem por 90% dos OK

O Brasil segue à margem da virada da eletromobilidade e este isolamento em relação aos principais mercados do mundo, que são China, Estados Unidos e Europa ocidental, alimenta uma espécie de negacionismo automotivo. O fato é que, consolidados os números globais do primeiro semestre deste ano, os veículos elétricos (EVs) ultrapassaram a barreira comercial de 4,1 milhões de unidades e seguem ganhando terreno, em relação a 2022. O mais impressionante, os EVs já respondem por 60% a 90% das vendas de zero-quilômetros em mercados como a Suécia e Noruega. Já por aqui, a recusa em aceitar a realidade e o futuro inexorável se manifesta, principalmente, nas mídias sociais, que são terreno fértil para a propagação de ‘fake news’. Mas a Matemática é uma ciência exata e não há como negar o avanço até mesmo no mercado nacional, onde os modelos 100% elétricos registraram alta de quase 11%, entre janeiro e junho – de 3.395 para 3.760 unidades. “Não há tempo a perder e o que estamos fazendo, aqui, é descarbonizar nosso negócio o mais rápido possível”, pontua a gerente de engenharia de integração da Toyota, Jacquelyn Birdsall. “Trata-se de ter uma visão clara, realista, do amanhã”.

Jacquelyn não está se referindo apenas a um futuro irremissível, mas ao presente de europeus, norte-americanos e chineses que já veem uma verdadeira guerra de preços entre os EVs. Do outro lado do mundo, na China, a Tesla cortou os preços de sua linha em até 4,5%, nesta semana, para reverter a queda de mais de 30% nas vendas, registrada em julho. “A disputa de preços tem sido e continuará sendo uma constante neste segmento”, prevê a analista Joanna Chen, da Bloomberg Intelligence. “A própria Tesla já havia feito cortes de quase 15% no mercado chinês, em janeiro, e agora alguns de seus modelos estão custando cerca de metade dos valores de tabela para Europa e Estados Unidos”, destaca Joanna.

Até no Brasil, onde o volume de vendas de EVs é 700 vezes menor do que atrás da Grande Muralha, a chegada do BYD Dolphin mexeu com as peças no tabuleiro. De cara, a Chery reduziu o preço de seu iCar em 14%, enquanto a Peugeot cortou R$ 50 mil do valor sugerido de seu e-2008 GT, no que foi seguida pela Renault, que baixou o preço do Kwid E-Tech em R$ 10 mil. Na última segunda-feira, foi a vez da JAC reduzir os preços dos E-JS1, E-JS4, E-J7 e iEV330P de 3% a 9%. “Só em julho, os EVs registraram aumento de 116% nos emplacamentos nacionais, em relação ao mesmo mês de 2022”, destaca o presidente do conselho diretor da Associação Brasileira do Veículo Elétrico (ABVE), Ricardo Bastos. “As vendas de modelos eletrificados – híbridos puros e plug-in, além dos 100% elétricos – atingiram um novo recorde, no Brasil, com mais de 7,7 mil unidades. Esses números comprovam que a eletromobilidade está ganhando força, no país, tanto por uma maior oferta de veículos quanto pela ampliação da infraestrutura de recarga, por meio da instalação de eletropostos públicos e semipúblicos”, acrescentou Bastos.

Dados de junho mostram que já existem 3.500 pontos de recarga no Brasil, o que ainda é muito pouco se comparado aos números dos principais mercados de EVs – só na França, há 100 mil pontos públicos para recarga. Mas a ampliação da infraestrutura de recarga é outra prova inconteste de que até por aqui, onde não existe uma política de incentivos e nem um programa de descarbonização governamentais, a própria oferta caminha para a eletrificação. “Os governos norte-americano, chinês e da União Europeia (UE) vêm antecipando suas metas para renovação das frotas, como por meio de políticas industriais para EVs, baterias e toda cadeia de suprimentos minerais. No geral, os gastos globais destes governos aumentam, anualmente, ultrapassando US$ 400 bilhões – o equivalente a R$ 2 trilhões – em 2022”, detalha o diretor executivo da Agência Internacional de Energia (IEA), Fatih Birol. “No ano passado, mais de 90% das vendas de EVs foram cobertas por políticas de incentivo”.

Nos EUA, alta de 50%

Só entre janeiro e junho deste ano, foram vendidos 696,6 mil EVs na Europa ocidental, o que elevou a participação dos modelos 100% elétricos para 13% do mercado europeu. Nos Estados Unidos, as vendas cresceram 50% em relação a 2022, chegando a 557,3 mil unidades, mas é na China que as comercializações explodiram, chegando a 2,7 milhões de unidades – alta de 32% em relação ao ano passado. Mais do que a comprovação insofismável da virada da eletromobilidade, os números europeus e chineses revelam outra tendência, também muito importante: no Velho Continente, os EVs já vendem mais do que os híbridos plug-in (que podem ter suas baterias recarregadas por tomadas de energia) e, enquanto seus volumes cresceram 45%, no primeiro semestre, os dos híbridos convencionais subiram menos de 28% – ou seja, o momento em que os modelos 100% elétricos superarão os híbridos puros, em vendas, já se aproxima. Para além disso, no último mês de junho, os EVs superaram os carros de passeio e os comerciais leves movidos a diesel, na Europa, pela primeira vez na história.

“O automóvel do futuro é elétrico e a eletrificação é inexorável”, sentenciou o presidente da subsidiária brasileira da Renault, Ricardo Gondo, durante a apresentação do Metaverso Industrial que prepara a fábrica paranaense da marca para a nacionalização da segunda geração do Dacia Stepway – que, aqui, será renomeado como Renault Kardian. “O setor automotivo representa 20% do nosso Produto Interno Bruto (PIB) industrial e nossos fornecedores têm condições de competição em nível global, mas a criação do ecossistema necessário para o Brasil se inserir na virada da eletromobilidade, para produzir EVs, depende da inserção desta tecnologia na realidade do país. A experiência dos brasileiros que têm e usam carros elétricos é positiva, há um novo jogo sendo disputado e não podemos ficar para trás”, complementou o presidente da Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea), Márcio Lima Leite, no fórum ‘Conduzindo o Futuro da Eletrificação no Brasil’.

Como se vê, não há dúvidas de que a virada da eletromobilidade já se opera e, também, não há razões para ninguém – em sã consciência – duvidar que este é um caminho sem volta, até porque não se trata de uma escolha do consumidor, mas, sim, de uma questão legislativa: “As metas de emissão zero são a pedra angular da política de descarbonização nos transportes e essas metas têm datas de implementação relativamente curtas”, observa diretor executivo da IEA, Fatih Birol. Enquanto o Brasil dorme em berço esplêndido, Inglaterra e Singapura já demarcaram o ano de 2029 como o último para carros de passeio com motores a combustão interna. Cinco anos antes, em 2025, a Noruega só permitirá a venda de modelos livres de emissões. No mesmo ano, Chile, Colômbia e Equador vão aposentar os ônibus tradicionais no transporte público e, em 2040, a Argentina vai banir os automóveis equipados com propulsores térmicos – o Chile fará o mesmo, só que cinco anos antes, em 2035, junto com os países da UE.

Já no Brasil, a expectativa da Anfavea é que, dependendo do cenário, os EVs responderão por algo entre 12% e 22% do mercado nacional, em 2030, chegando a mais de 30%, só em 2035. “Não podemos ficar reféns das importações e, no nosso projeto de neo industrialização, trabalhamos com um foco principal: queremos mais fornecedores domésticos e mais tecnologia doméstica, até porque a eletrificação do setor trará consigo mais conectividade. Há dois anos, nossa maior responsabilidade era a sobrevivência das famílias e dos empregos para retomarmos nossa produção”, lembrou o presidente da Anfavea, Márcio Lima Leite. “A partir de agora, nosso futuro é a descarbonização”, aponta Leite.