Coreia descobriu que autonomia dos Tesla pode ficar em apenas 50,5% do prometido

Estações de recarga rápida da Tesla: a Recurrent Auto, empresa norte-americana que compara o alcance real de um EV com os dados divulgados pelos fabricantes, investigou 8.000 modelos da Tesla, nos últimos dois anos, e descobriu que a variação em relação à autonomia prometida pela marca pode chegar a 90%
Crédito: Tesla/divulgação

A disputa entre as montadoras pela preferência do consumidor nem sempre é tão limpa quanto o leitor imagina. Para dizer a verdade, ela nunca é restrita às “quatro linhas do gramado”, para usar uma expressão que andou em voga. Quem acompanha os resultados dos ‘crash tests’ do EuroNCAP e do LatinNCAP, bem como os mais recentes escândalos de emissões (notadamente o “DieselGate”, do Grupo Volkswagen), sabe que a adulteração de números é prática recorrente e, pior, tolerada pelos consumidores, principalmente o brasileiro, que tem orgulho de se assumir “apaixonado por carros” – coitado. O opróbrio desta vez diz respeito à Tesla Motors, do bilionário Elon Musk, que, em junho do ano passado, criou um departamento interno para tapear os clientes que reclamavam da autonomia de todos os modelos da marca, que nunca equivalia ao alcance prometido. “Você, literalmente, via os números caindo no computador de bordo”, disse Alexandre Ponsin à Agência Reuters. Ele mora no Estado norte-americano do Colorado e é dono de um Model 3, que comprou zero-quilômetro em 2021.

Para forjar uma maior autonomia para seus automóveis, a Tesla manipulou o software que exibe a estimativa de alcance sem necessidade de recarga das baterias, no quadro. “Só quando a carga baixa de 50% da capacidade, o algoritmo passa a exibir um alcance mais realista”, disse à Reuters um dos funcionários recrutados para o grupo batizado de “Diversion Team”. A fraude foi tão bem pensada, digamos assim, que conta até mesmo com um modo de segurança: “Todos os modelos da marca são capazes de rodar 15 milhas adicionais (o equivalente a 24 quilômetros), mesmo quando o mostrador exibe que a bateria está totalmente descarregada”, acrescentou a fonte que não quis se identificar. “Nossa missão era evitar, com medidas diversionistas, que os clientes descontentes inundassem os concessionários”.

Quando Alexandre Ponsin comprou seu Model 3, acreditou que o alcance prometido, de 353 milhas (mais de 560 quilômetros), era factível. “Nos dias frios, a bateria descarregava em menos de a metade dessa distância. Era uma diferença tão grande que achei que meu carro tinha algum defeito”, comenta o coloradense. A Recurrent Auto, empresa norte-americana que compara o alcance real de um EV com os dados divulgados pelos fabricantes, investigou 8.000 modelos da Tesla, nos últimos dois anos, e descobriu que a variação pode chegar a 90%. “Em uma viagem com a família para a Califórnia, cheguei a agendar uma visita à assistência técnica, mas recebi duas mensagens de texto afirmando que ‘diagnósticos remotos’ não identificaram nada de errado com as baterias e que, por isso, estavam cancelando o agendamento”, conta Ponsin, decepcionado com o atendimento.

A autonomia é o fator que mais pesa na decisão do comprador, tanto em relação à troca de um modelo equipado com motor a combustão por outro, 100% elétrico, bem como para a escolha deste ou daquele EV. “O software da Tesla ignora a temperatura externa, que é um fator que reduz drasticamente o alcance, além de outras condições que também afetam a estimativa do computador de bordo”, destacou o executivo-chefe da Recurrent à ao jornal AutoNews, Scott Case. “Em baixas temperaturas, as reações químicas e físicas dentro dos pacotes são retardadas, ativando um sistema de aquecimento que, da mesma forma que estradas acidentadas ou mesmo um motorista apressado, drenam a energia mais rapidamente”, pondera Case. Por outro lado, para cada agendamento cancelado, a Tesla economizava pelo menos US$ 1.000 (o equivalente a R$ 4.800). Simples, assim…

“Propaganda enganosa”

As autoridades reguladoras já haviam descoberto a “mágica” de Elon Musk, tanto é que, na Coreia do Sul, a Tesla foi multada em 2,8 bilhões de wons (o equivalente a R$ 105 milhões), no início mês de janeiro, justamente por falsear a autonomia e os tempos de recarga de seus modelos. Nos Estados Unidos, a Agência de Proteção Ambiental (EPA) vem exigindo, há três anos, que o fabricante reduza as estimativas de alcance de seus modelos em pelo menos 3%. Mas na democracia liberal do Tio Sam é o poder econômico que dá as cartas e o máximo que a Tesla se limitou a acrescentar um link em seu site, com dicas para o condutor otimizar sua direção. “De fato, para além do indicador do nível de carga, no painel, o sistema de navegação dos EVs da marca traz estimativas mais realistas, que levam em conta um conjunto mais amplo de condições, mas elas, ainda sim, tendem ao exagero”, assegura o executivo-chefe da Recurrent, Scott Case. “Avaliamos outros modelos, como o Chevrolet Bolt, o Mustange Mach-E, da Ford, e o Hyundai Kona, entre outros. Enquanto o computador de bordo do Kona geralmente subestima a distância que ainda pode ser percorrida, os Tesla fornecem estimativas superestimadas. Trata-se de propaganda enganosa, não há dúvida”, pontua Case.

O leitor pode estar pensando em, simplesmente, não comprar um Tesla e, assim, desguiar da fraude. Mas parece que Elon Musk já cooptou outras montadoras, porque um estudo com 21 marcas diferentes publicado pela SAE International, em abril deste ano, revelou que os alcances anunciados para seus EVs ficaram 12,5% abaixo da realidade. “Três modelos da Tesla tiveram o pior desempenho na bancada, com um alcance médio 26% inferior ao divulgado”, destacou à Agência Reuters o pesquisador Gregory Pannone, que assina a pesquisa. “Nos EUA, os EVs são obrigados por lei federal a exibirem uma etiqueta de eficiência energética expressa na equivalência em milhas por galão (MPGe), permitindo que os consumidores os comparem com veículos movidos a gasolina ou diesel. O problema é que os fabricantes podem escolher como calcular este alcance”, pondera Pannone.

Lá, as montadoras podem usar uma fórmula padrão da EPA, que converte os resultados dos testes em cidade e estrada para calcular a autonomia total ou promoverem medições adicionais para declararem uma estimativa própria de alcance. E a única razão para realizar mais testes é gerar uma estimativa mais favorável, ora!

Vendas crescem 13 vezes

Em 2022, as vendas da Tesla chegaram a 1,3 milhão de unidades, volume 13 vezes maior que o registrado apenas cinco anos antes. Mas à medida que as entregas aumentavam, também cresciam as reclamações sobre alcance e os agendamentos na rede assistencial, de modo que as reservas tinham previsão de mais de um mês de espera. A recomendação da direção da empresa foi, então, para que suas equipes evitassem a todo custo a marcação dos serviços. “A atmosfera do escritório às vezes lembrava a de um telemarketing e o supervisor do escritório de Las Vegas comprou o metalofone que os atendentes batiam para comemorar cancelamentos”, conta um dos funcionários do “Diversion Team”. Os consultores, normalmente, executam diagnósticos remotos, mas este grupo foi treinado para, apenas, dizer aos clientes que a previsão de alcance eram, apenas, estimativas e davam dicas sobre hábitos de direção. “Se o diagnóstico remoto encontrava algo de errado, não reportávamos ao cliente”.

A Tesla também atualizou seu aplicativo de telefone para que qualquer cliente que reclamasse do alcance não pudesse mais agendar serviços. Eles só podiam solicitar que alguém da Tesla os contatasse, mas este retorno demorava dias, semanas – num certo momento, eram 2.000 casos por semana, quando a previsão inicial era para um máximo de 750 reclamações semanais. “Os supervisores nos disseram para ligar para o cliente uma vez e, se não houvesse resposta, encerrar o caso como ‘sem resposta’. Quando eles atendiam a ligação, o atendimento devia ser completado em, no máximo, cinco minutos. No final do ano passado, simplesmente interrompemos os diagnósticos remotos nos veículos dos proprietários que relataram problemas de alcance e milhares deles foram informados de que não havia problema algum com seus automóveis”.

A fonte que não quis se identificar à Reuters garantiu que o serviço passou para uma equipe no Estado norte-americano de Utah e que, agora, são esses consultores que lidam com as reclamações de autonomia, mas a agência não conseguiu determinar se a mudança foi, realmente, implementada.

“A Tesla é a marca que trata mais agressivamente o alcance de seus EVs, no aspecto comercial, mas não posso afirmar que ela está trapaceando, já que os cálculos de alcance são complexo e dependem de muitas variáveis”, declara o diretor de testes do portal Edmunds, Jonathan Elfalan. “Todos os cinco modelos do fabricante que testamos, em 2021, não atingiram a autonomia anunciada. Em contrapartida, todos, exceto um dos 10 outros modelos de outros fabricantes, conseguiram exceder o alcance anunciado. Na época, a Tesla nos contestou, destacando o ‘buffer’ que garantia quilometragem extra, mas repetimos as provas e apenas duas unidades conseguiram cumprir o declarado. Na verdade, a marca é muito boa na reinterpretação das regras do EPA, para maximizar suas próprias métricas”.

A Comissão de Comércio sul-coreana (KFTC) descobriu que, em dias frios, a autonomia dos Tesla pode ficar em apenas 50,5% do prometido. No último dia 19 de junho, dois executivos da subsidiária asiática da companhia assinaram um documento, em que declaram, assumem a “propagando enganosa”. Se bem conheço os consumidores brasileiros, é agora que vai vender igual água…