Enquanto vendem carros do século 19 por R$ 100 mil, pressionam governo para taxar o setor, na contramão de três PLs no Congresso
A Associação Brasileira dos Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea) pressiona o governo federal para um decreto presidencial, que aumente o imposto de importação para EVs de origem chinesa em 35%. Isso ocorre porque as transnacionais que produzem carros ultrapassados – com motor a combustão e híbridos de primeira geração – no país estão alarmadas pela chegada dos elétricos “made in China”, com preços até mesmo inferiores aos que cobram por modelos que remetem ao século 19. Ou seja, para continuar empurrando sua porcariada goela abaixo dos brasileiros, reeditando o antigo modelo agroexportador colonial português que vigorou de 1530 a 1822, as montadoras alemãs, francesas, italianas, japonesas, norte-americanas e sul-coreanas necessitam de uma “blindagem tributária”, já que, como não investem na modernização de seu parque industrial, não têm como competir com as mais de 80 marcas chinesas que despontaram nas últimas décadas. Simples, assim: você pega um BYD Dolphin de R$ 150 mil, aumenta seus impostos em mais de 1/3 e joga seu preço ao consumidor para a casa dos R$ 220 mil, beneficiando quem vende um hatch romeno – o Dacia Sandero de segunda geração – rebatizado de Kardian por R$ 130 mil. Obviamente, que o exemplo vale para todo tipo de refugo do Primeiro Mundo ofertado por aqui como a quintessência da modernidade.
Trata-se de uma manobra marota, digamos assim, já que a mesma Anfavea que pede, que clama, que implora por aumento de impostos, hoje, vai tirar o corpo fora e colocar a culpa no governo, amanhã, quando as vendas de 0 km voltarem a cair. Vão dizer que a carga tributária brasileira é escorchante, que o “custo Brasil” é o culpado de tudo, omitindo que operam por aqui com as maiores margens de lucro do mundo, ganhos tão grandes que financiam, quando não subsidiam, os EVs que suas próprias marcas vendem na Europa e nos Estados Unidos. Basta o leitor pensar no seguinte: se nos Estados Unidos e na China, uma Aspirina tem o mesmo preço, na África do Sul ela sai pelo dobro e, no Brasil, 30 vezes mais caro do que o valor de referência internacional.
Diante de uma suposta invasão de EVs chineses, o lógico, o razoável, o coerente seria que os fabricantes “brasileiros” pedissem ao governo uma redução de suas próprias cargas tributárias, para baratear os automóveis que vendem, ganhando competitividade em relação aos estrangeiros. Mas – é difícil até de acreditar – eles estão fazendo o contrário disso: ao invés de reduzir o preço final das carroças que produzem, aumentando a demanda nos segmentos em que atuam, pedem o aumento da carga em relação aos elétricos “made in China”. Tem-se, portanto, que a única explicação para o fato é a Anfavea ter plena ciência de que não há como frear a virada da eletromobilidade – afinal trata-se de uma questão de sobrevivência do ser humano – ao passo que também já percebeu que nem barateando seus modelos jurássicos conseguirá tapear o consumidor por muito mais tempo.
Daí, entre investir bilhões de dólares na modernização de suas linhas de montagem, preferem espoliar os tupiniquins, da mesma forma como Portugal fez durante três séculos de período colonial. E no dia que o pau-brasil, que o ouro e os diamantes acabam, dão as costas e vão embora sem a menor desfaçatez, como a Ford acaba de fazer.
O mais insólito, é que o pedido de decreto vai na contramão do projeto de lei (PL) 2.327/2021, de acordo com o qual a logística reversa de baterias de EVs deve priorizar a reciclagem e o reaproveitamento de seus componentes na fabricação para novas baterias; o PL 2.156/21, recentemente aprovado na Comissão de Desenvolvimento Urbano da Câmara, que incentiva a aquisição de veículos elétricos, a viabilização de uma rede pública de recarga e medidas que facilitem a conversão de modelo com motor a combustão em elétricos; além do O PL 915/23, que torna obrigatório o sistema automático de desligamento geral e esfriamento da bateria dos EVs, no caso de batida com deflagração dos airbags. É surreal, mas a Anfavea quer que a Presidência da República publique um decreto que vá de encontro com projetos em trâmite no Congresso!
Falta amor próprio
Na verdade, o que nos falta é amor próprio, porque não houve perda nenhuma para o Brasil, em termos industriais ou de soberania, quando a Ford deu no pé. Pelo contrário, em menos de três anos, uma gigante chinesa duas vezes maior que a marca norte-americana já assumiu sua fábrica baiana, onde produzirá veículos mais modernos e baratos. Na verdade, os brasileiros ganharam com a fuga da Ford, na medida em que, agora, há uma perspectiva para além do despojo. E mais verdadeiro ainda é o fato de apenas os inocentes que confiavam nela terem se ferrado, porque seus “preciosos” carros perderam valor de mercado e já enfrentam dificuldade para manutenção, que além de passar a ser feita genericamente ainda encareceu. E se retornarmos poucos meses no tempo, nem a falta de memória crônica dos brasileiros servirá de desculpa, porque o “novo carro popular” tentado como resposta do governo para a pressão da Anfavea, que ameaçava uma onda de demissões, ficou no papel – este humilde jornalista e advogado que vos escreve foi um dos únicos, senão o único, a afirmar categoricamente que o programa era uma falácia, um tiro no pé e que terminaria com o endividamento das famílias de classe média, como ocorreu.
O Brasil escolheu um caminho marginal à virada da eletromobilidade, seguindo com automóveis sucateados por preços aviltantes que, agora, as montadoras sequer conseguem manter, já que a pressão das matrizes europeias e norte-americanas é por remessas de lucro cada vez maiores. Em 2012, o governo zerou o IPI dos 0 km. Naquela época, a medida que implicou na renúncia de R$ 26 bilhões de dinheiro público não aumentou as vendas, que, na contramão do esperado, recuaram 0,3%. Há 13 anos, o objetivo da desoneração não era o aquecimento do mercado interno, mas a manutenção dos empregos no setor automotivo e, neste ponto, foram criadas mais de 27 mil vagas de trabalho, mesmo que temporárias. Porém, o resultado a médio prazo foi negativo, já que, entre 2014 e 16, as montadoras demitiram 200 mil trabalhadores.
Então, basta olhar para os US$ 14,6 bilhões (na época, equivalentes a R$ 25,9 bilhões) em remessas de lucro que foram enviadas para as matrizes, no exterior, que o leitor verá para onde foi o dinheiro, quando há mais de uma década tentou-se o mesmo plano. Ocorre que desta vez não será igual, mas muito pior: as marcas que dominam o mercado nacional, atualmente, irão fechar suas fábricas e seguir operando apenas com importados, com preços acima de R$ 200 mil – igualzinho a Ford já faz. Daí, vão querer a redução dos impostos que, nesta semana, pressionam para o governo aumentar e qualquer pessoa menos ingênua consegue enxergar que o jovem brasileiro com 16 ou 17 anos não terá condição de adquirir um 0 km, nem quando tiver 35 anos de idade e dez de carreira profissional – lembrando, ainda, que a Carteira de Trabalho (CLT) e os benefícios decorrentes de ser celetista foram sepultados na “era Temer”.
A Anfavea é uma associação de fabricantes que, não é necessário explicar, não fala pelo leitor e nem defende seus interesses, como consumidor. O que as montadoras desejam, com esta pressão, é manter os brasileiros no subjugo, refreando qualquer possibilidade de qualificação do nosso mercado, impedindo que EVs mais modernos e baratos estejam ao seu alcance, enquanto o convencem por meio do “jornalixo” que os motores a combustão são “o futuro da nação”. Parafraseando o imortal Renato Russo, “que país é esse”?!?!?