Modelo E-Tech, que faz “58 km/l”, não está disponível na Argentina, de onde o multiuso seria importado; na França, versão 100% elétrica tem assinatura mensal por R$ 1.835 ou 1/5 do salário mínimo de lá

O Renault Kangoo nunca foi uma preferência nacional, mas o multiuso teve seus dias de glória, no Brasil, numa época em que os monovolumes e minivans tinham maior participação de mercado – acredite! – do que os SUVs. Com interior amplo e espaço no porta-malas para levar as bagagens de uma família com até cinco pessoas, Fiat Doblò, o próprio Kangoo e até o Citroën Berlingo eram figurinhas carimbadas nas ruas, pelo menos das maiores metrópoles do país. Bom, a versão de passageiros do “canguru” da Renault deu seu adeus por aqui, em 2011, mas segue firme e forte na Europa, que é seu hábitat natural, e na Argentina – no Velho Continente, a Renault já eletrificou toda sua gama que, atualmente, é dividida entre híbridos plug-in e modelos 100% elétricos. Lançada em 2021, essa atual geração tem desembarque agendado para este primeiro semestre, no Brasil, mas a pré-venda da variante livre de emissões, que promete um consumo – de energia elétrica – equivalente a até 58,8 km/l, foi tratada com discrição e seu lançamento parece estar em modo de espera.

É que, desde o final do ano passado, há uma expectativa pela chegada do modelo feito na Argentina. Bom, não há nada que impeça isso, mas “nuestros hermanos” não têm, pelo menos até agora, a versão E-Tech em seu portfólio. Lá, o multiuso está disponível só com motores a combustão: TCe 110, a gasolina e dCi 1.5, turbodiesel, com preços a partir de o equivalente a R$ 150 mil. Portanto, se o leitor consultar o site argentino da Renault e checar esta informação, confirmará que o Kangoo elétrico (Z. E.) ofertado no mercado portenho, atualmente, corresponde à versão comercial (baú) da segunda geração – vendida por aqui como Z. E. Maxi, por ignominiosos R$ 210 mil.

Já na França, onde o novo Kangoo E-Tech parte de 37.500 euros que, com um bônus governamental – olha o estado aí, gente! – de 5.000 euros, caem para 32.500 euros (o equivalente a R$ 181 mil), as versões comercial e de passageiro estão em sinergia. E para os jovens franceses da “Geração Z”, que não têm interesse na propriedade de um veículo automotor, a marca criou um plano em que dá para sair do concessionário a bordo da nova geração pagando uma prestação de módicos 330 euros (R$ 1.835) mensais, com três anos de garantia, assistência técnica e manutenção inclusos por mais 1 euro, ao mês – isso mesmo, você não leu errado. Lembrando que, lá, o salário mínimo é de 1.700 euros, desde 1º de janeiro.

Para além das condições de pai para filho, exclusiva dos franceses, tanto eles quanto os argentinos podem usufruir de um porta-malas com 775 litros de capacidade volumétrica (até 3.500 l, com o rebatimento do encosto traseiro), mas a versão elétrica de 90 kW de potência (equivalentes a 120 cv) e autonomia de até 285 quilômetros também é exclusiva dos europeus. É verdade que seu alcance não impressiona, mas a Renault garante que, como o carregador rápido (vendido à parte), é possível estender sua autonomia de 170 km com apenas 27 minutinhos na tomada.

Valor descabido

Olhando essas credenciais, o sujeito que pegar uma fita métrica e medir o novo Kangoo verá que ele é menor do que parece, aliás, que suas dimensões são próximas das dos SUVs mais vendidos do Brasil, como o Jeep Compass: 4,48 metros de comprimento (8 cm maior que o Compass), 1,91 m de largura (10 cm a mais) e 1,83 m de altura (aqui, expressivos 20 cm de vantagem). Portanto, tendo em vista que o Kangoo E-Tech é seis vezes mais econômico que o Jeep, imaginá-lo como uma alternativa mais espaçosa, prática e sustentável não é mais do que um exercício lógico. Mas é aqui que o noticiário engana o leitor, na medida em que o preço inicial de R$ 150 mil, no mercado argentino, não tem como referência a versão 100% elétrica que, importada da França, chegaria por aqui com valores descabidos.

E sem a perspectiva de importar um produto que tenha o mínimo de competitividade, o provável é que apenas a versão comercial do modelo dê as caras por aqui e, mesmo assim, apenas para manter um terreno que a Renault tem bem demarcado, com o modelo Z. E. Maxi. Na prática, a nova geração do Kangoo, que fechou 2022 como um dos dez automóveis mais vendidos da Argentina e um crescimento de quase 65%, superando inclusive o primo Sandero, precisaria de uma cartada muito certeira – e de sorte – para retomar um lugar que foi seu de direito, no Brasil. E, aqui, um ludíbrio pode se somar ao noticiário enganoso para não só tapear o consumidor, como fazê-lo quebrar o cofrinho e “investir” as economias em “um novo tipo” de SUV.

É que por menos de R$ 160 mil, os argentinos têm a opção do Kangoo Stepway TCe 1.6, de 110 cv, versão com apelo aventureiro feita sob medida para a paupérie espiritual e a carência de autoestima do brasileiro de classe média, para quem um multiuso com adereços de SUV cai até bem, contanto que por um valor que caiba no orçamento. É verdade que a Renault dificilmente conseguiria posicioná-lo na mesma faixa de preços do Spin Activ (a partir de R$ 130 mil), da Chevrolet, e nem do Tracker (a partir de R$ 150 mil), que pelo menos tem cara e coração de jipinho. Mas as montadoras, muitas vezes, pregam este tipo de peça no mercado, colocando um verdadeiro embuste na prateleira para ver o que acontece. E o pior é que, na maioria das vezes, sempre há um consumidor corajoso, destemido e disposto a encarar o arrependimento iminente de peito aberto.

Já para o leitor que é tão prudente e medroso como eu, é bom ficar de olho no novo Kangoo e ver em quais versões e condições ele chega por aqui – se é que, realmente, vai chegar – evitando que um amigo ou parente embarque numa cilada desta magnitude. Lembrando que, principalmente quem entende de carros, tem a obrigação cívica de alertar o incauto numa hora dessa, até por uma questão de amor ao próximo…