País deixará de ser um polo produtivo para se tornar apenas um mercado importador
Demorou um pouco, mas finalmente a Honda anunciou seu plano global de eletrificação. Nos próximos dez anos, a marca vai investir US$ 40 bilhões (o equivalente a mais de R$ 185 bilhões, cifra que corresponde à soma de todo o orçamento dos Estados do Rio de Janeiro e Minas Gerais) para o lançamento de 30 modelos elétricos (EVs) e na sua reformatação industrial, atingindo uma capacidade anual de produção de dois milhões de EVs, até 2030. O plano também inclui um novo modelo de negócios, em que as vendas não se resumirão aos automóveis, mas combinarão hardwares e softwares, além dos serviços. “Não estamos parados, apenas assistindo o que acontece. Mas para iniciarmos uma grande transformação, temos que ser assertivos”, disse o presidente-executivo (CEO) da gigante japonesa, Toshihiro Mibe, durante o anúncio oficial de um projeto que, até 2040, vai abolir os motores a combustão interna. A má notícia é que o Brasil não foi sequer citado por Mibe e, se considerarmos o que foi divulgado até agora, a expectativa é a pior possível: paulatinamente, deixaremos de ser um polo produtivo para nos tornarmos, apenas e tão somente, um mercado importador – o que, em última instância, significa a supressão de postos de trabalho e o enxugamento da rede.
“Vamos investir mais de US$ 340 milhões (o equivalente a R$ 1,6 bilhão) na produção de baterias em estado sólido, mais leves e com maior densidade energética, já em 2024”, destacou o chefão da segunda maior montadora japonesa e sétimo maior grupo automotivo do mundo. “Até o final desta década, elas estarão equipando toda nossa gama de EVs”, declarou. Nos próximos dois anos, a Honda tomará emprestada a arquitetura Ultium, da General Motors, para dar vida a dois SUVs elétricos, o novo Prologue e um modelo da Acura ainda sem nome, além de explorar suas ‘joint ventures’ norte-americanas, que também fornecerão conjuntos para seus modelos produzidos nos Estados Unidos. Na China e no Japão, as parcerias com a CATL e a Envision AESC – esta última também é fornecedora da arquirrival Nissan – garantirão suprimentos para o programa que tem nas baterias substituíveis um diferencial estratégico.
Para o Brasil, o que a Honda apresenta de concreto é a redução drástica de sua gama a partir do encerramento da produção nacional do WR-V e, antes deste, do Civic – o Accord e o CR-V, modelos importados que ocupavam os postos mais altos da linha ofertada no país, também figuram como “não disponíveis” no catálogo. Para além da promessa de “renovações dos produtos atuais”, sobraram os City (hatch e Sedan) para consubstanciar a desqualificação do portfólio, um deslustre que, inevitavelmente, culminará com a depreciação da marca que, outrora, se posicionava apenas um degrau abaixo de Audi, BMW e Mercedes-Benz, e, agora, virou uma espécie de “Fiat premium”.
De qualquer forma, os EVs representarão apenas 40% da produção global da Honda, em 2030, o que dá – muito – espaço para modelos híbridos e, obviamente, aqueles que seguirão equipados com motores a combustão. “Hoje, nossas vendas globais estão na casa de 4,5 milhões de unidades, volume que esperamos ampliar para 5 milhões”, declarou o vice-presidente executivo da companhia, Kohei Tekeuchi. Bom, isso quer dizer que, nos próximos oito anos, a subsidiária brasileira vai se inserir em um bolo de nada menos que 3 milhões de veículos, mas o problema é que a produção nacional da marca caiu de 148 mil unidades, em 2015, para 88 mil unidades, no ano passado – uma retração de 41,5%.
Lucro operacional
Para alcançar a neutralidade nas emissões de carbono, a Honda dará uma grande guinada rumo à eletrificação, já que, desde 1997, suas vendas de EVs não chegam a 33 mil unidades, sendo que quase a metade deste total foi comercializada no ano passado (14,3 mil unidades) e, hoje, seu único modelo 100% verde é o Runabout. Já entre os híbridos, a marca segue como uma das referências: são 3,9 milhões de unidades vendidas, desde o lançamento do Insight, sendo 561,1 mil só em 2021. “Apostamos nos híbridos como uma arma poderosa para reafirmarmos nossa participação nas Américas do Sul e Central, até 2030”, disse Toshihiro Mibe. O problema, aqui, é saber se a subsidiária brasileira será convertida em um polo produtivo deste tipo de veículo – o que é muitíssimo improvável e eu, pessoalmente, descarto – ou se eles serão importados. E por falar no assunto, as vendas de importados da marca por aqui caíram de mais de 19 mil unidades, em 2010, para reles 494 unidades, em 2021 – queda de 97%.
Assim sendo, não há dúvidas de que o plano global de eletrificação da Honda marginalizará o Brasil, bem como os outros mercados latino-americanos.
“Esperamos aumentar nossa margem de lucro operacional, subindo dos 5,5% atuais – o ano fiscal da companhia terminou no último dia 31 de março – para 7%”, afirmou o vice-presidente Tekeuchi. Certamente, o aumento dos ganhos não se baseia em um mercado (o Brasil) onde as vendas da marca caíram de 20,8 mil para 13,5 mil unidades, só no primeiro trimestre de 2022, e sua participação encolheu para 3,6%. “A partir de 2030, vamos avançar com nosso programa de eletrificação para os segmentos de entrada. Teremos bases para EVs de pequeno, médio e grande portes, com os quais cobriremos todos os nichos de mercado”, garantiu o presidente Toshihiro Mibe.
Na Ásia, a Honda terá uma arquitetura dedicada para subcompactos elétricos, incluindo um “minicomercial”. Para modelos médios, a marca usará a base comutada com a GM, enquanto sua e:Architecture dará vida a sedãs e SUVs de grande porte com foco nos mercados norte-americano e chinês. “Dos 30 EVs que estamos anunciando, dez serão lançados na China nos próximos cinco anos”, adiantou o diretor executivo Shinji Aoyama. “Só em uma segunda etapa de lançamentos virão os modelos voltados para o mercado global”, acrescentou.
A pá de cal na subsidiária brasileira não deve demorar mais que uma década para ser dada. “Reafirmo: vamos eliminar os motores térmicos, gradualmente, até 2040. É uma mudança que já está em andamento com a redistribuição de nossa engenharia, das unidades de propulsores a combustão interna para os centros de desenvolvimento de baterias”, comunicou Aoyama. Ou seja, a expertise tupiniquim parece não ter utilidade neste planejamento. “Nossa transformação ainda inclui veículos autônomos (VAs) e eVTOLs – que são grandes drones elétricos. Depois de 2030, pretendemos desenvolver foguetes reutilizáveis para lançamentos de satélites e robôs avatares para o que chamamos de mobilidade virtual”, aditou.
A involução desta mesma Honda, aqui no hemisfério Sul, pode ser percebida da seguinte forma: em 2009, ano do lançamento nacional do City, ele partia de R$ 56.210 (versão LX, equipada com câmbio manual). Em 2015, quando passou pela primeira reformulação, a Honda baixou os preços do sedã e sua versão DX (também equipada com câmbio manual) chegava nos concessionários por R$ 53.900. Hoje, seu valor inicial é de escandalosos, injustificáveis, absurdos R$ 108 mil. Uma inflação de 100% que não se materializa no suposto avanço do City, um aumento acintoso que, definitivamente, não se corporifica na adoção de alguns mimos telemáticos – muito inferiores a um iPhone de última geração – e sistemas de auxílio – que agregam US$ 190 ao custo de produção.
Enquanto uma nova Honda nasce no além-mar, com a promessa de “criar mais tempo livre para a pessoas, removendo quaisquer restrições à sua liberdade, expandindo o tempo e o espaço para elas assumirem papéis ativos”, no Brasil, a mesma marca se apoia em um produto estacionário cuja única propriedade que evoluiu foi o preço – isso porque até em termos de estilo o City é ultrapassado, para não dizer broxante. Temos, mesmo, o que merecemos…