Em 1997, os contratos de leasing deram prejuízos de R$ 400 mil, por carro; hoje resta um único modelo funcional
Foram necessários seis anos e meio de desenvolvimento para a General Motors lançar o EV1, comercialmente, em dezembro de 1996. Na época, o Ford Taurus reinava absoluto, como carro de passeio mais vendido dos Estados Unidos, e comemorava a conquista do “pentacampeonato” no mercado norte-americano. Comparado ao Taurus, o EV1 levava desvantagem em tudo, do porte à motorização, quesito em que o Fordão oferecia até mesmo um V8 de 235 cv para sua versão topo de linha. “Foi um capítulo glorioso. Ficamos muito orgulhosos e, quando a primeira unidade saiu da linha de montagem, em março daquele ano, algumas pessoas chegaram a chorar. Foi um automóvel à frente do seu tempo e, naquela época, acreditávamos verdadeiramente na tecnologia”, conta Maureen Midgley, ex-gerente de produção do Lansing Craft Centre, onde o modelo era fabricado. “O lançamento foi exibido nos concessionários, mas a companhia optou por não vendê-lo e ofertá-lo apenas por leasing, coletando dados com os clientes e mantendo sob controle aquilo que era a quintessência da eletromobilidade de então”.
O primeiro anúncio televisivo do EV1 custou US$ 1,5 milhão (o equivalente a R$ 7,5 milhões) só para ser produzido – fora os gastos com a veiculação do comercial. O filme publicitário era um romance de ficção científica, em que um grupo de eletrodomésticos (uma torradeira, uma máquina de waffle, um aspirador de pó, ferramentas elétricas e lâmpadas) sai correndo de casa só para observar um EV1 cruzando a rua. A narração da atriz Linda Hunt anunciava: “O carro elétrico está aqui” – a peça foi indicada ao prêmio Emmy, de 1997.
“Revendedores californianos da Saturn foram os primeiros a exibirem o lançamento. Depois, ele foi ofertado no Arizona e na Georgia – cuja maior cidade é Atlanta. Havia uma equipe de marketing que, na época, cuidou de tudo: eles escolheram as regiões metropolitanas mais importantes para o programa e analisaram, um por um, os pedidos de cada cliente para garantir que o EV1 se encaixaria em suas demandas. Se o proponente, por exemplo, rodasse mais de 160 quilômetros por dia, o carro não lhe atenderia e, se não pudesse instalar um recarregador em sua garagem, o contrato estava fora de questão”, conta o então vice-presidente dos concessionários da marca, Peter Hoffman. “O leasing era um bom negócio para os revendedores, mas este marketing dedicado nos distanciou da clientela, até porque os anúncios da GM nunca traziam a marca Saturn, como se o produto fosse um genérico. E cada concessionário tinha investido US$ 10 mil só para se preparar para a novidade”.
R$ 2.370 por mês
Hoffman, que hoje preside o Sierra Auto Group, estima que muitos revendedores não tenham nem amortizado este investimento, mas a General Motors produziu mais de 1.100 unidades, entre 1996 e 99, o que foi considerado um volume viável para um plano de longo prazo. No Ano-Novo de 1997, os contratos de leasing do EV1 traziam o preço-base de US$ 33.995 e o consumidor que tivesse suas credenciais aprovadas – e não apenas o seu crédito – pagava boletos mensais entre US$ 480 (o equivalente a R$ 2.370 atuais) e US$ 640 (R$ 3.160 atuais) para tê-lo na garagem. Por falar em garagem, o MagneCharge, da Delco, custava US$ 1.995 extras e, para quem preferisse, havia a opção de alugá-lo por US$ 50 mensais – apenas para efeito de comparação, hoje, os norte-americanos pagam US$ 460 mensais, em média, pelo leasing de um Ford Explorer 2023.
“Em 1998, as campanhas publicitárias escassearam e fornecedores pararam de produzir itens de reposição do carro, o que aumentava o tempo de reparo, encarecendo o seguro. Um porta-voz da General Motors afirmou, tempos depois de o EV1 ser descontinuado, que uma lista de espera com 5.000 candidatos ao modelo terminava com a aprovação de apenas 50 deles. Lembro-me que conseguimos fechar 20 contratos em um único dia e comemoramos muito esta marca, mas, no fundo, sabíamos que este é um número muito pequeno diante do gigantismo do negócio da companhia”, rememora o ex-vice-presidente de vendas e marketing da Saturn, Joe Kennedy. “Havia uma certa paixão no ar e muitas pessoas me procuravam com uma maleta cheia de dólares para comprar um EV1, mas era um automóvel de baixíssimo volume de produção”, acrescentou Kennedy que, hoje, é um dos principais executivos da Rippleworks.
Quando as baterias de chumbo-ácido deram lugar ao novo pacote, de hidreto metálico de níquel (Ni-MH), a autonomia do modelo dobrou, mas o conjunto era muito caro e tinha custo unitário de US$ 10 mil – isso, em um automóvel que tinha preço para o consumidor declarado em menos de US$ 34 mil. Pior, executivos e membros do conselho da GM queriam investir na linha Hummer e em outros SUVs, porque, num capricho do destino, os preços da gasolina haviam caído e estavam abaixo de US$ 1, por galão, ou o equivalente a R$ 1,30, o litro – hoje, o valor médio, no Estado de Nova York, é de US$ 3,70, por galão (o equivalente a R$ 4,85, por litro). “Muitas pessoas de dentro da GM se entusiasmaram, mas a alta cúpula nunca aceitou a ideia de um veículo 100% elétrico. No fundo, tudo foi montado para que eles pudessem manter controle e certificar-se de que não estenderiam o projeto”, avalia Kennedy.
Para azedar de vez as coisas, no final da década de 90, a relação entre a General Motors e o California Air Resources Board (CARB), que é a agência ambiental do governo estadual, tornou-se bastante tensa. A GM discordou das metas de emissão zero, impostas pelo CARB. Então, começou um conflito interno dentro da própria companhia, porque, de um lado, a montadora fazia lobby para derrubar a demanda por EVs, enquanto a engenharia seguia avançando, mesmo que lentamente. “Eu sentia como se estivesse no comando de um experimento científico que, independentemente do avanço, não daria dinheiro. Então, as coisas mudaram administrativamente e cada linha de veículos passou a ter seu próprio demonstrativo de resultados (P&L). E quando vimos os gráficos de receitas e custos do EV1, foi uma sentença de morte”, conta Ken Baker que, desde 1995, assumira vice-presidência de pesquisa e desenvolvimento da companhia.
Deficitário e descontinuado
Deficitário, o EV1 foi descontinuado sem cerimônias, em 1999. Quatro anos depois, os últimos contratos de leasing estavam expirando e a GM exigiu que os clientes devolvessem os carros. “Alguns deles estavam relutantes, implorando para comprá-los, mas a empresa recusou. Nosso plano foi esse, desde o início: quando o aluguel terminar, não haverá extensão e vamos, apenas, pegar o carro de volta. O cineasta Francis Ford Coppola estava tão apegado ao seu EV1 que relutou em entregá-lo, listando itens que deveriam ser aprimorados, mas nossa equipe foi à sua casa, no Napa Valley, e praticamente confiscou o carro de volta. Em julho de 2003, alguns viúvos e viúvas do modelo se reuniram no Cemitério de Hollywood e promoveram um velório para o automóvel, com direito a enterro”, lembra Baker.
Apesar de um vereador de Los Angeles, Eric Garcetti, ter se recusado a devolver seu EV1, afirmando que a GM teria que “arrancá-lo das mãos frias e mortas do carregador”, todo o projeto foi cancelado por uma razão muito simples: dinheiro. Nos anos seguintes, as baterias avançaram rapidamente, mas nenhum EV1 experimentou essa evolução: a GM decidiu destruir todas as unidades produzidas por razões legais e de segurança, os esmagando e triturando em seu campo de testes no deserto do Arizona. “Na verdade, compreendi a ideia de esmagá-los, porque o EV1 havia cumprido seu trabalho e, naquela altura, não havia razão para mantê-los. Foi um ato bastante dramático, um dia triste”, narra Ken Stewart, ex-diretor de marketing do produto e, hoje, presidente-executivo (CEO) da Bright Road.
Há quem diga que a principal razão pela qual aqueles foram esmagados foi o fato de, na época, o departamento jurídico da GM ser dez vezes maior do que a equipe de marketing do EV1. “Enquanto a GM destruía os carros, uma pequena startup da Califórnia viu a oportunidade do veículo elétrico à frente e quase duas décadas depois, é impossível não se perguntar: será que a GM, que gerou tanta paixão e entusiasmo em torno dos EVs, teria sido a Tesla, se tivesse bancando este ciclo gestacional de investimentos? É lamentável que a direção da época tenha jogado fora uma posição de liderança na indústria automotiva. Nós jogamos tudo no vaso sanitário e demos descarga”, lamenta Stewart.
O fim da linha
Cada EV1 produzido gerou, na ponta do lápis, um prejuízo de US$ 80 mil (o equivalente a R$ 400 mil) para a General Motors. Trata-se, portanto, de uma questão bastante simples e tão elementar quando a esfericidade da Terra: apesar de a primazia, o cupê 100% elétrico gerava um prejuízo unitário que, no final dos anos 90, precisava ser compensado pela venda de 15 unidades do Impala SS, que era o sedã mais vendido da Chevrolet, no mercado norte-americano. Hoje, existe apenas uma unidade funcional – ou seja, capaz de rodar – do EV1: ela está em exibição permanente no National Museum of American History, do Smithsonian Institution, em Washington (EUA) – o National Motor Museum sul-africano, em Birdwood, também possui uma unidade, mas inoperante. Em 2019, uma unidade “desgarrada” do EV1 foi encontrada, abandonada, em um estacionamento de Atlanta, no Estado norte-americano da Georgia. Aparentemente íntegro, na parte externa, estava sem baterias.
Pelo menos 40 ex-engenheiros do EV1 ainda trabalham para a General Motors. Muitos são líderes no projeto Ultium, mas a maioria dos jovens que participaram do desenvolvimento migraram para outras empresas, como a CATL, a Canoo, a NIO, a própria Tesla e a Via Motors. “Meu maior problema era mandar as pessoas para casa para dormir, porque trabalhavam o dia todo e metade da noite. Foi incrivelmente gratificante estar com pessoas que ousaram sonhar”, assegura Ken Baker, primeiro gestor de programa de EVs da GM. Uma história e tanto, um dos capítulos, realmente, inspiradores dos 250 anos do automóvel, que nasceu com o “fardier à vapeur” de Nicolas-Joseph Cugnot, no final do século 18.