Maior, mais avançado e acessível, novo EV italiano evidencia o abismo que separa os automóveis brasileiros dos estrangeiros
Em 6 de fevereiro de 1990, portanto há mais de 33 anos, os jornais brasileiros dividiram suas manchetes entre o último jogo de Zico pelo Flamengo, que aconteceu na noite daquele dia, e a afirmação do ex-presidente Fernando Collor de Mello, feita na Alemanha, de que os carros fabricados no Brasil eram tão atrasados em relação aos europeus que pareciam “carroças”. Na época, a própria Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea) reconheceu, fazendo um ‘mea-culpa’, o atraso e, quer queiram ou não os críticos de Collor, foi ele quem deu o pontapé para a modernização do setor no país. No início dos anos 2000, o Brasil se orgulhava de ofertar nas concessionárias os mesmos automóveis que as marcas instaladas no país ofereciam, no além-mar. Mas esta sinergia acabou e, pior, hoje há um verdadeiro abismo entre os veículos equipados com motores a combustão que são produzidos e vendidos por aqui, a preço de ouro, e os moderníssimos EVs que já dominam as vendas em alguns mercados externos, como Noruega e Suécia. O recém-lançado Fiat 600e é o maior exemplo da desqualificação do mercado brasileiro e basta compará-lo com o nosso Argo para comprovar que, apesar de muita gente ainda não se dar conta, já voltamos à era das carroças. Senão, vejamos:
O 600e é uma espécie de “Quinhentão” com 4,17 metros de comprimento (18 cm maior que o Argo) e 360 litros de capacidade volumétrica no porta-malas, 60 l a mais que o hatch brasileiro – com o encosto traseiro rebatido, este volume sobe para 1.230 l no primo rico. Em termos de estilo, o novo EV traz uma releitura do Cinquecento, um verdadeiro clássico do design italiano, enquanto o Fiat nacional segue uma orientação “cosmopolita”, assemelhada aos modelos japoneses e sul-coreanos. Mais alto e “musculoso”, o 600e é um médio-compacto encorpado, mas tem apenas 4 cm a mais de distância entre-eixos que o Argo – portanto, a promessa da matriz italiana de uma “dolce vita” a bordo é uma forma exagerada de adjetivar sua habitabilidade.
Em termos de conteúdo e tecnologia embarcada, não há comparação entre o Argo brasileiro e seu primo europeu. Trata-se do primeiro modelo de sua classe a oferecer cromoterapia – uma paleta de cores que permite 64 combinações da iluminação interna – e, entre seus mimos, destaque para o banco do motorista que, além dos ajustes elétricos, traz função massageadora para as costas. Sua sopa de letrinhas inclui piloto automático adaptativo (ACC), assistente de limite de velocidade (ISA) e frenagem autônoma de emergência, entre outros recursos não disponíveis para o modelo ‘made in Brazil’, além do Uconnect de última geração. Seu sistema de navegação, que tem atualização automática, indica os pontos de recarga no percurso e fornece informações em tempo real sobre vagas de estacionamento gratuitas disponíveis – dicas de economia para um automóvel que, lá, tem status de “popular”.
Por falar nisso, a versão de entrada do Argo brasileiro (Drive 1.0, a partir de R$ 84.490) custa o equivalente a 64 salários mínimos. Já o 600e (a partir de 35.950 euros, na Itália) custa o equivalente a 42 salários mínimos de lá – na Itália, uma decisão deste ano do Tribunal de Justiça milanês estipulou em 840 euros mensais o valor mínimo para que um salário não ofenda o “limiar da pobreza” estipulado constitucionalmente. Assim, comparando o poder de compra dos trabalhadores tupiniquins e italianos, o novo EV da Fiat europeia custa 35% mais barato que a “carroça” vendida por aqui – lá, aliás, com uma entrada de 6.500 euros (R$ 34.600), o cliente já sai do revendedor a bordo de um 600e, levando consigo um talão com 35 boletos de 260 euros (R$ 1.390).
Desempenho e consumo
Ao contrário do Argo Drive 1.0, que traz sob o capô um motor térmico de 75 cv cujo conceito remonta ao final do século 19, o novo 600e conta com uma unidade elétrica de 156 cv (115 kW) para acelerar de 0 a 100 km/h em 9,0 segundos, contra 13,4 s do primo brasileiro – e isso, com 500 “quilinhos” a mais. Sua velocidade máxima, de 150 km/h, não impressiona e fica aquém dos 162 km/h do Argo, mas aqui é preciso considerar as condições em que cada um as alcança. De qualquer forma, é no campo da eficiência que o EV italiano dá um verdadeiro coro no modelo brasileiro: seu consumo (de eletricidade) de 124 Wh/km equivale a nada menos que 71,4 km/l de combustível, média cinco vezes superior à da versão mais fraca do Argo. E com uma autonomia urbana de até 460 quilômetros, o dono de um 600e vai rodar 17 km a mais que o primo pobre, antes de ter que deixar o carro conectado no seu carregador doméstico, enquanto dorme. Isso sem falar que, enquanto o brasileiro pagará R$ 270 para encher o tanque de 48 litros com gasolina, no posto de combustíveis, o parente italiano vai desembolsar – isso, na sua conta de energia da Itália – menos de o equivalente a R$ 120 para recarregar as baterias.
Por falar nisso, a recarga completa das baterias do 600e leva cinco horas e meia, mas dá para garantir 240 km extras de autonomia em apenas 26 minutinhos.
Bom, não é preciso ser um ‘expert’ para notar que o mercado brasileiro ficou ancorado no passado, enquanto os europeus já vivem a nova realidade da eletromobilidade. Maior, mais espaço, rápido e econômico, o 600e prova que é possível, sim, termos automóveis mais modernos e acessíveis no Brasil. E vale citar que, por lá, há uma versão híbrida pura (Hybrid) do modelo, que combina um propulsor a combustão de 100 cv com uma unidade elétrica de 29 cv. Apesar de não divulgar as médias de consumo (de combustível) do 600 Hybrid, a Fiat promove seu lançamento com uma campanha bastante agressiva, em termos de preços, que partem de 19.950 euros, o equivalente a R$ 106.310 ou menos de 24 salários mínimos italianos – comparativamente, 62% mais barato que o Argo Drive 1.0 vendido no Brasil.
Comparando estes dois modelos, nos vem algumas perguntas: como o Brasil pode ser o principal mercado mundial da Fiat quando a marca trata o consumidor brasileiro de maneira tão diferente – leia-se pior – dos europeus? Em 2022, a Fiat vendeu 430 mil carros de passeio e comerciais leves por aqui, contra menos de 200 mil, na Itália (foi o menor volume no mercado doméstico, desde 1958); não era recebermos uma “atenção especial” em função disso? E se os brasileiros deixassem de comprar os veículos da marca, apenas por um ano? Isso teria um impacto devastador nas contas da companhia e, sabendo disso, não estaria na hora de o consumidor daqui exigir tratamento isonômico?
A impressão que fica é de que somos espoliados por marcas norte-americanas, europeias e japonesas porque, no fundo, no fundo, ainda não nos libertamos do colonialismo. Agimos como se todos nós fôssemos escravos e devêssemos obediência aos estrangeiros; como se a exploração de nossa mão de obra, de nossos recursos naturais e do nosso mercado fosse um desígnio inexorável. Somos uns tolos, mesmo…