ONE e Toyota desenvolvem pacote com duas baterias que prometem 970 km de autonomia
O leitor que viveu os anos do Rock Brasil não se esquece de um clássico universitário, a música “Química”, de Renato Russo, gravada pela Legião Urbana, pelos Paralamas do Sucesso e, mais tarde, pelo Capital Inicial. O refrão “Eu odeio Química!” era uma espécie de hino dos vestibulandos da época, mas é exatamente a matéria mais chata do colegial que promete uma solução definitiva para o problema da autonomia dos EVs. “Os consumidores, principalmente os norte-americanos, querem jipões de sete lugares e picapes com rodado duplo, mas suas famílias têm, em média, quatro pessoas, e suas caminhonetes jamais rodam em uma estrada de terra. Com os EVs acontece a mesma coisa: os compradores querem um automóvel com autonomia para grandes distâncias, mas nunca percorrem estas distâncias entre as sessões de recarga das baterias”, pontua Mujeeb Ijaz, fundador e presidente-executivo (CEO) da startup de armazenamento de energia Our Next Energy (ONE), avaliada em US$ 1,2 bilhão (o equivalente a R$ 5,8 bilhões). “É uma demanda aparentemente injustificada, mas que precisamos solucionar sem aumentar enormemente o peso e o custo de produção do veículo”.
Pressionada sobre sua posição na virada da eletromobilidade, a Toyota apresentou, nesta semana, um extenso cronograma que prevê novas gerações de baterias de íon de lítio, a partir de 2026, com alcance de 970 quilômetros (mais de 600 milhas), e de estado sólido, a partir de 2028, com uma autonomia ainda 50% maior do que essa. “Com novas tecnologias, esperamos reduzir o custo de produção em 20%, e oferecermos recarga parcial, de até 80%, em apenas 20 minutos”, disse o diretor de tecnologia da marca, Hiroki Nakajima. “Vamos combinar várias químicas para termos o pacote ideal para cada modelo de nossa gama. Até 2030, pretendemos comercializar 3,5 milhões de EVs, anualmente, e estamos determinados a atingir a liderança mundial, também em baterias”, acrescentou.
Pouca gente se dá conta, mas já existem EVs com autonomia superior à de seus equivalentes, equipados com motor a combustão. O Jetta Comfortline 2.0, por exemplo, não roda nem 335 quilômetros em uso urbano, se abastecido exclusivamente com álcool. Já o Ioniq 6, da Hyundai, roda até 495 km nas mesmas condições, sem necessidade recarga das baterias – sua autonomia é, portanto, 45% maior que a do Volkswagen. E é aí que entra a boa e velha Química: “Algumas montadoras já estão desenvolvendo pacotes de baterias a partir de químicos diferentes dos tradicionais. A nossa ambição é termos um alcance de 600 milhas (equivalente a 965 km)”, projeta Ijaz. “Hoje, a maioria dos fabricantes dispõe da química NMC (LiNiMnCoO2), que usa lítio, níquel, manganês e cobalto para obter as faixas mais altas. É um coquetel denso, em energia, e que supera outras combinações em alcance e massa. Mas há problemas, como os preços do níquel e do cobalto”, pontua Ijaz.
Para além desta questão, a consultoria McKinsey & Co destacou, em seu mais recente relatório, o grande risco ambiental que representam tanto a mineração quanto o processamento do níquel. “Há também uma questão geopolítica, já que um terço da produção global de níquel vem da Rússia e da China que, juntas, respondem por mais de 40% do produto já processado”, destaca Gary Retelny, CEO do Institutional Shareholder Services (ISS), líder mundial em governança corporativa e soluções de investimento. “O cobalto tem problemas semelhantes, pois cerca de 70% da produção mundial vem da República Democrática do Congo, onde praticamente não existem regulações trabalhistas ou de segurança”, acrescenta Retelny.
Fogo e extensão
Apesar de, hoje, sustentarem a virada da eletromobilidade, níquel e cobalto são elementos químicos que, quando combinados, representam um grande risco de fuga térmica. Não foi à toa que Chevrolet e Hyundai fizeram recalls por risco de incêndio em seus EVs e também não é por acaso que tanto a Tesla quanto a própria General Motors estão bandeando para a química LFP (fosfato de ferro e lítio) que, além de ter custo de produção mais baixo e vida útil maior, é menos suscetível a incêndios. “Nosso conjunto ‘dual path’ usará um pacote LFP bem menor que os atuais, com 150 milhas (o equivalente a 240 km) de alcance. Uma bateria de extensão, que adicionará até 450 milhas (o equivalente a 725 km) ao EV, completará o conjunto”, conta Mujeeb Ijaz, da ONE, que inicia testes com a BMW ainda neste ano. “Ainda não posso revelar a química usada por esta bateria de longo alcance, mas ela é livre de cobalto e enriquecida, nos cátodos, em manganês”.
Ijaz destaca um ponto importante do sistema “dual path”, que é a grande redução de custos em relação aos US$ 75 por kWh, das baterias LFP, e aos US$ 115 por kWh, das NMC. “Com esta química ‘de boutique’, conseguimos chegar em um custo de US$ 50 por kWh para um conjunto que, mesmo não sendo tão durável quanto os atuais, ainda garantirá uma autonomia de 350 milhas (o equivalente a 560 km), após 200 ciclos de carga”, detalha o executivo – hoje, uma bateria LFP suporta 3.000 recargas, sem baixa na retenção de energia, o que se traduz em uma quilometragem de quase 650.000 km que, na maioria dos casos, supera a própria vida útil do EV. “No caso do ‘dual path’, essa quilometragem baixaria para 145.000 km, mas nossas pesquisas estimam que, no uso regular, o condutor precisaria deste alcance extra apenas quatro vezes por ano”.
Nesta mesma linha, a NanoGraf, uma startup de materiais para baterias de Chicago, está apostando alto na química alternativa e em ânodos de silício para aumentar, consideravelmente, a densidade dos pacotes de íon de lítio. A empresa revelou sua nova célula no ano passado, reclamando para si o título de “bateria mais densa em energia do mundo”. A empresa promete 20% mais eficiência do que as líderes do setor, com uma química que, aparentemente, resolveu o problema de inchaço que os ânodos de silício apresentaram no passado. Em fevereiro, a NanGraf recebeu um aporte de US$ 65 milhões (o equivalente a mais de R$ 310 milhões), vindos até mesmo dos Departamentos norte-americanos de Defesa e Energia.
Nesta semana, um relatório da consultoria de gestão P3 Group apontou o Air Grand Touring, da Lucid, como o EV de recarga mais rápida do mundo: em apenas 20 minutos, ele recuperou energia para percorrer 208 milhas (o equivalente a 335 km) adicionais. O Model S Plaid, da Tesla, ficou em segundo lugar, garantindo uma extensão de quilometragem de 193 milhas (o equivalente a 310 km) e o EV6, da Kia, ficou em terceiro, com 191 milhas (o equivalente a 307 km) extras. “As montadoras e os fabricantes de baterias estão se esforçando para ampliar o alcance dos veículos elétricos, mas esse não é o único número com que os consumidores se preocupam. Eles também consideram a rapidez com que podem recarregar as baterias de seus EVs”, avalia Loren McDonald, CEO da EVAdoption, empresa que fornece análises de mercado para a virada da eletromobilidade.
“O que os usuários buscam é confiabilidade, segurança e praticidade, ou seja, uma química especial para ampliar o alcance dos EVs e reduzir os tempos de recarga. Este é o futuro dos EVs”, avalia Mujeeb Ijaz. Fato é que com uma solução, aparentemente, óbvia, a ONE pode repetir a metáfora do ‘ovo de Colombo’ com sua bateria “2 em 1”. E tomando as palavras do próprio descobridor da América, “a dificuldade está em ser o inventor, o primeiro a conhecer ou a demonstrar uma solução”.