Dados revelam que jovens da geração Y e Z têm deixado de tirar a CNH nos últimos anos. Pandemia pode influenciar ainda mais essa redução

Se há alguns anos a carteira de motorista era ostentação entre os jovens, símbolo de status e independência, hoje ela não passa de mais um objetivo prorrogado. Era comum o jovem, assim que completasse a maioridade plena, buscar a autoescola mais próxima e dar andamento nas aulas práticas e teóricas para adquirir a CNH — que logo seria o documento mais valioso a ser apresentado na roda de amigos. Acontece que esse exibicionismo deixou de ser um comportamento comum entre os jovens de 18 a 25 anos nos últimos anos.

Segundo dados do Denatran (Departamento Nacional de Trânsito), em 2011, a quantidade de jovens condutores habilitados no Brasil (em todas as categorias, de A a E) era de 7.645.831, entre homens e mulheres. Até 2015, houve um crescimento de 8% no número de registros, porém nos quatro anos posteriores, houve um declínio de 5.5%.

A redução dos registros das CNHs pode ser observada tanto para os habilitados homens quanto para as mulheres. De 2011 a 2019, a baixa no gênero masculino foi cerca de 6%, versus 4% no gênero oposto. No entanto, os jovens rapazes continuam contabilizando o maior número de tiragens de carteiras de habilitação. Dos mais de sete milhões de condutores em 2019, os homens concentravam 5.089.871 desse total.

Entretanto, nos últimos anos as mulheres mostraram-se mais instigadas a tirar a CNH do que os homens, revelando a busca por maior autonomia e empoderamento por parte delas. Em quatro anos, de 2011 a 2015, o crescimento foi de 16%, contra 5,3% no gênero masculino. No mesmo período, mas segmentado por idade, as mulheres também tiveram um avanço maior do que os homens.

Entre 18 a 21 anos, houve uma expansão de 21% — 10% a mais do que eles na mesma faixa de idade. Já dos 22 a 25 anos, o avanço entre o gênero feminino seguiu por mais três anos, até 2018, com um crescimento de 16%. Enquanto que, em sete anos, os homens somaram um índice de apenas 2.9%.

O ano de 2015 mostrou-se crucial para a diminuição das tiragens das carteiras de motoristas por parte dos jovens, pois a partir dele, os índices, nas duas categorias de idade, em ambos os gêneros, decaíram de forma gradativa. Mas, em um cenário, onde os jovens da geração Y e Z optam por não mais tirar a CNH, como ficará a mobilidade pós-pandemia?

O ‘boom’ dos aplicativos de mobilidade

Em 2014, quando a Uber chegou no Brasil com a Copa do Mundo FIFA, todo o conceito de mobilidade urbana foi transformado. Se os táxis eram as únicas alternativas de mobilidade, além dos transportes públicos, quando os ubers chegaram e provocaram a disputa em relação ao transporte dos passageiros, eles se viram diante de uma concorrência antes inexistente.

Além de ser mais econômicos, o aplicativo também proporcionou maior conforto e segurança na hora da chamada do “motorista particular”. Não era mais necessário sair para a rua, fosse sol ou chuva, para encontrar um táxi disponível. O aplicativo fazia essa conexão em segundos onde o passageiro estivesse, conseguindo alcançar um coletivo até então não abrangido (ou abrangido de forma insatisfatória) pelos taxistas.

No contexto da pandemia, essa facilidade é o que dá certa segurança ao sair de casa. O isolamento e a obrigatoriedade da máscara, hábitos fundamentais para a prevenção da saúde, alteraram ainda mais a perspectiva dos jovens em relação a autonomia de dirigir. Mas o que atualmente é bem visto, anos atrás gerou suposições sobre a concorrência desleal, propagada pelos taxistas em relação a Uber. Até que, em 2015, um estudo divulgado pelo CADE (Conselho Administrativo De Defesa Econômica), revelou que, sob a ótica do equilíbrio urbano, a chegada da Uber no mercado brasileiro não alterou o panorama do transporte individual no país.

“A atuação de novos agentes tende a ser positiva […] pode-se verificar que os enormes benefícios trazidos pela tecnologia dos aplicativos usados nos serviços de caronas pagas são altamente eficientes em mitigar os problemas de informação assimétrica nos mercados de táxi”, conclui o estudo. E hoje, cinco anos depois, confirmamos o quão positiva essa chegada foi e está sendo.

A partir daquele momento, o aplicativo da 99 (anteriormente 99 Táxi) passou a inovar para acirrar a rivalidade com a Uber. No entanto, a entrada de novos ofertantes no mercado de transporte individual de passageiros começou a ganhar força, propiciando ampla concorrência com outros aplicativos voltados a mobilidade urbana, como o BlaBlaCar, Lady Driver, FemiTaxi, Cabify, Garupa, inDriver, entre outros.

Ao que tudo indica, essa explosão de apps influenciou bastante na decisão dos jovens antes tirar a carteira de motorista. Uma vez que, muitos deles, saem de casa apenas por meio dos aplicativos ou de transporte público. Esse é o caso do estudante de jornalismo, Ivan Garcia da Rocha, de 19 anos, que não possui habilitação e, ao sair de casa, prefere usar o transporte público, quando não, pegar um Uber ou 99. Mas se esse era um hábito cotidiano antes da quarentena, hoje em dia é muito mais. “Com esse problema grave de saúde em que vivemos, eu praticamente vou de Uber para todo lugar. Acredito que vale muito mais a pena do que arriscar a saúde”, comenta ele.

Esse é o mesmo pensamento da nutricionista Geany Adrielly Xavier, de 25 anos, que também não possui habilitação e, por morar próximo a um monotrilho, prefere usar o transporte público ou solicitar uma corrida pelos aplicativos. Em seu grupo social, a maioria dos colegas também não possui carteira de motorista, então o uso dos aplicativos é muito comum, principalmente agora, devido ao coronavírus.

Nesse presente, ela comenta que tirar a CNH não é algo que seja prioridade em sua vida. “Só quando eu estiver financeiramente estável, e aí sim ter condições de comprar o meu carro, eu posso pensar em tirar a carta […] no momento é muito cômodo eu ficar sem ter carro, sem dirigir”, diz ela.

A nutricionista faz parte da chamada “Geração Canguru”, nome dado ao grupo de jovens entre 25 e 34 anos que têm adiado a saída ou retornado para a casa dos pais. O termo surgiu na França, no fim dos anos 1990, e tem se tornado uma tendência em ascensão no Brasil e no Mundo. Diferente do que muitos podem pensar, o comodismo e o conforto não são os principais fatores que mantém os filhos na casa dos pais por mais tempo, mas sim, a possibilidade de investir em objetivos pessoais próprios e na formação acadêmica, a fim de obter mais chances no mercado de trabalho.

Com as mudanças ocasionadas pelo vírus, muitos pais receberam os filhos de volta para casa, o que pôde assegurar a estabilidade mental e econômica deles. A “Geração Canguru” pesa muito na questão do custo total de propriedade versus o custo total de mobilidade. Ela é muito atenta na questão financeira e na questão dos gastos que serão demandados em alguma ação. Ou seja, em relação a aquisição de um veículo, por exemplo, eles já calculam o custo de seguro, do estacionamento, dos impostos, da gasolina, e no final das contas, entendem que é mais vantajoso utilizar um serviço como a Uber.

Um estudo realizado em 2016, pela Deloitte, revela que mais de 60% dos jovens brasileiros que usam serviços de compartilhamento de veículos questionam necessidade de possuir o carro próprio. “É interessante perceber que 43% dos jovens que participaram do estudo utilizam esse serviço pelo menos uma vez por semana”, afirma Reynaldo Saad, sócio-líder da área de Bens de Consumo e Produtos Industriais da Deloitte Brasil. A pesquisa, intitulada Global Automotive Consumer Study: Future of Automotive Technologies, foi desenvolvia em 17 países, dentre eles o Brasil.

A realidade do carro próprio

Embora a incerteza em adquirir o carro próprio tenha intensificado entre os jovens da geração Y e Z, não são apenas os aplicativos de compartilhamento de corridas que pesam nessa decisão. Mas sim, o custo total do investimento. E no ambiente da pandemia, as inseguranças econômicas não são favoráveis para que essa percepção seja modificada. Porém, sabendo dessa hesitação, os serviços de aluguel de veículos têm chamado atenção e estimulado o mercado.

O estudo da Deloitte também indica o recuo na disposição do brasileiro de investir em recursos tecnológicos embarcados nos veículos. De acordo com o levantamento de 2014, os consumidores afirmaram que poderiam gastar uma média de R$ 5.951 para contar com determinados equipamentos tecnológicos em seus automóveis. Já no estudo de 2016, essa pretensão caiu para a média de R$ 1.995. O que também faz refletir sobre a importância de analisar a questão da mobilidade entre os jovens com um recorte de renda.

Apesar de ter adiado o objetivo de tirar a carteira de motorista, a nutricionista Geany Adrielly, confessa que só não tirou a habilitação ainda porque não tem o carro próprio. E mesmo a família tendo dois automóveis em casa, ela não considera a possibilidade de pegá-los emprestado. Prefere conquistar um emprego fixo na área, investir em outras coisas que considera mais necessárias no momento, e só depois, quando tiver condições, comprar um automóvel — e tirar a carteira de motorista junto. “Mas eu quero ter carro um dia sim!”, reforça.

O estudante, Ivan Garcia, pensa igual: “Eu não quero ter a carta e não ter o carro”. Então, por uma questão de prioridade, (antes da pandemia) também optou por viajar, comprar roupas e passear com a namorada. Mas em seus planos, já há algumas rotas como viajar para Santos ou para a Argentina de carro futuramente, e são esses pensamentos que o deixam empolgado para ter o veículo.

Ainda assim, o objetivo de tirar a habilitação ficou para depois da conclusão da faculdade, em 2022. Além da espera pela normalização das coisas no pós-pandemia, será quando ele conseguirá economizar para tirar carta e comprar um carro “mais simples que seja”. A aquisição de um carro zero não é para qualquer um, muito menos para um jovem recém-formado que não depende financeiramente dos pais. O estudante pensa que não faz muito sentido o primeiro carro ser “novinho em folha”, porque, segundo ele, “é como você acabar a faculdade e querer ser chefe de uma empresa, não vai dar certo”. Por isso, os jovens tendem a comprar carros mais antigos e usados. “Fora também que o preço de um carro zero é extremamente abusivo”, ressalta.

Atualmente são poucos os carros de baixo-custo disponíveis do mercado, mas isso reflete justamente a mudança de comportamento do consumidor. Para frear as estatísticas e posicionar os jovens como novos consumidores no futuro, a tecnologia está sendo empregada e utilizada como a principal aliada para atrair a atenção desse público.

Murilo Briganti, diretor de produto da consultoria automotiva Bright Consulting, comenta como a indústria tem observando as mudanças dos jovens. “É uma geração que já nasceu conectada à internet, então a única maneira de conseguir fidealizá-los é se, de alguma forma, você conseguir expandir essa conectividade que a gente tem dentro dos smartphones para dentro do automóvel”, diz ele.

Os preços dos automóveis vêm subindo anualmente e a tendência é que eles subam cada vez mais, justamente pelo aumento da tecnologia embarcada nos modelos. Comparado há 10 anos atrás, hoje o mercado de veículos de entrada é extremamente baixo. Se antes o jovem podia comprar um Uno, Palio ou um Gol, desembolsando uma média de R$ 30 mil reais, hoje o Gol não custa menos que R$ 50 mil. O que colabora para a prorrogação da aquisição da carteira de motorista e, consequentemente, de um automóvel. “Eu acho que é difícil a montadora conseguir captar o mercado que já existiu em termos de população mais jovem”, reflete Murilo Briganti. E em tempos de covid- 19, é bem provável que essa dedução se cumpra.

Por Karolline Vicente da Silva – estudante de jornalismo da Fapcom
1º lugar no Prêmio Autoinforme Estudantes de Jornalismo
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