Enquanto o transatlântico Titanic consumia 35 ton de carvão, por hora, para alimentar seus motores à vapor de 46.000 cv, um EV precisa de até 15 kg de lantânio para suas baterias

Houve um tempo em que o carvão vegetal era mais importante do que a gasolina ou qualquer outro combustível fóssil, para os transportes. É que tanto as locomotivas que, literalmente, puxavam as malhas ferroviárias, quanto os grandes navios cargueiros que singravam os mares, eram equipados com motores a vapor. A Union Pacific “Big Boy” 4014, mais potente locomotiva de sua classe, consumia 11 toneladas (11.000 kg) de carvão e 12 mil galões (45.400 litros) de água, por hora, para mover seus quatro cilindros, gerando mais de 5.500 cv de potência e astronômicos 61.300 kgf de torque. No colossal Titanic, cujas 24 caldeiras alimentavam dois motores a vapor de 46.000 cv, cada, o consumo de carvão, mesmo com a embarcação imóvel, ancorada, chegava a 415 toneladas diárias – navegando, o transatlântico consumia 35 toneladas de carvão, por hora!

Bom, o Titanic afundou em 15 de abril de 1912, mas a locomotiva “Big Boy” operou na Union Pacific, a maior ferrovia norte-americana, até 1962. Da mesma forma, os enormes cargueiros da classe Liberty, com deslocamento de mais de 14,2 mil toneladas (mais de 14 milhões de quilos), operaram com motores a vapor até o início dos anos 70 – ou seja, não faz tanto tempo assim. O leitor mais lúcido e perspicaz deve ter feito as contas e percebido que a completa mudança na matriz energética dos transportes marítimo e ferroviário se consolidou em menos de duas décadas, lembrando que a virada da eletromobilidade se consumará, definitiva e irremediavelmente, em dezembro de 2034.

Daqui até lá, você irá ouvir falar cada vez mais em ‘metais de terras raras’, minerais que, da mesma forma com que o combustível substitui o carvão, estão sucedendo a gasolina e outros derivados do petróleo nos motores 100% elétricos. “Espera-se que só o mercado norte-americano de baterias automotivas alcance US$ 55 bilhões (o equivalente a mais de R$ 285 bilhões) anuais, já em 2030. Ocorre que o ritmo atual do fornecimento doméstico nos leva à projeção de que apenas 30% da demanda da indústria será atendida”, pontua o diretor do Laboratório Nacional de Argonne, Paul Kearn, no relatório ‘Building a Robust and Resilient US Lithium Battery Supply Chain’, da Li-Bridge.

Em nível global, o crescimento da energia primária aumentará 1,5% ao ano, até 2035, e estima-se que os combustíveis fósseis seguirão como fonte dominante, nos próximos anos, respondendo por mais de três quartos do suprimento total. Mas a energia renovável é a que mais cresce, proporcionalmente. “Neste contexto, os metais estratégicos de terras raras tornam-se indispensáveis. Afinal, sem esses minerais, a eletromobilidade, as tecnologias a laser e até mesmo a produção de smartphones são inviáveis”, comenta o consultor e cofundador da Technologyc Metals Research, Jack Liffon. “Estamos falando de uma classe pouco conhecida de elementos, encontrados em uma ampla gama de aparelhos e bens de consumo”, acrescenta.

Demanda crescerá 30 vezes

Para além do lítio, que já foi incorporado ao nosso vocabulário, o neodímio (principal componente da liga usada na fabricação de ímãs para motores elétricos) e o lantânio (indispensável para produção de baterias), bem como metais como o térbio e o disprósio (usados para preservação das propriedades eletromagnéticas de outros minerais) ampliam os verbetes do glossário automotivo. Apenas para se ter uma ideia, cada Toyota Prius demanda um quilo de neodímio e cada pacote de baterias que equipa o EV usa de dez a 15 kg de lantânio. Mas enquanto o európio, usado para geração de cores nos smartTVs, já é considerado excasso, o cério abunda. E apesar de o Brasil não fabricar baterias, o país exporta materiais usados em toda cadeia de suprimentos, como o silício e o grafeno – do qual detém a maior reserva do mundo.

A previsão da Agência Internacional de Energia (IEA) é que, para cumprir os termos do Acordo de Paris, até 2040, o volume global de vendas de EVs terá que alcançar a casa de 70 milhões de unidades, entre carros de passeio, comerciais leves e veículos pesados. A organização intergovernamental fornece dados, análises e recomendações para políticas energéticas. “Estamos falando de uma frota que demandará até 30 vezes a quantidade de metais de terras raras que se extrai e beneficia, atualmente”, alerta Jack Liffon, da Technologyc Metals Research.

Não há necessidade nenhuma de o leitor guardar os 17 elementos químicos que recebem esta classificação da União Internacional da Química (IUPAC). São todos lantanídeos, mais o escândio e o ítrio, acrescidos de alcalinos e actinídeos indispensáveis para a produção de baterias – por exemplo, de hidreto metálico de níquel (Ni-MH), íons de lítio, manganês, fosfato de ferro e cobalto (LCO, LFP, LMO, Li-NCA e Li-NMC). “Nas Américas, estamos pelo menos uma década atrás dos asiáticos e cinco anos atrás dos europeus, no que diz respeito ao desenvolvimento e produção de baterias de íon de lítio”, avalia o diretor executivo da NAATBatt International, um dos grupos mais atuantes em termos de energia e revitalização de baterias, James Greenberger.

Por isso, a analogia inicial entre o carvão vegetal e os combustíveis fósseis: “O armazenamento eletroquímico de eletricidade será, num piscar de olhos, uma tecnologia tão importante para a economia do século 21 quanto os semicondutores são, neste momento”, compara o especialista. Enquanto o Brasil dorme em “berço esplêndico”, os Estados Unidos consideram o assunto uma questão indissociável da perspectiva de um futuro limpo para as futuras gerações de norte-americanos. “Hoje, a produção de 75% dos pacotes de baterias, bem como a maioria das matérias-primas necessárias para sua fabricação, se concentra na China”, pontua Greenberger. “Os EUA têm a meta de zerar as emissões de carbono, em 2050, mas será difícil de cumpri-la, se o país não tiver independência neste setor”.

Meio trilhão de reais!

A virada da eletromobilidade também opera uma verdadeira revolução na cadeia de suprimentos automotivos. O estresse pela pandemia do coronavírus, o aumento dos preços dos materiais e a escassez de semicondutores colocam o setor sob pressão e estimulam o surgimento de novas tecnologias e soluções. Só nos dois últimos anos, as 20 maiores marcas do mundo gastaram quase US$ 94 bilhões (o equivalente a mais de R$ 490 bilhões) com o desenvolvimento de EVs. “Os fornecedores já foram avisados que também absorverão o custo desta transição”, conta o presidente-executivo (CEO) da Stellantis, Carlos Tavares. “Para alcançarmos uma escala massiva, necessitamos de novos processos e materiais”.

A Tesla, por exemplo, já produz células de baterias maiores, porém com menor custo de produção; a reciclagem atua na contenção dos preços do lítio; o carregamento remoto promete reduzir os problemas com infraestrutura e pacotes de baterias em estado sólido prometem recarga mais rápida, enquanto os motores com células a combustível voltam à pauta. Você pode não ter notado, mas ímãs para motores elétricos e baterias são, hoje, mais importantes para o futuro das companhias automotivas do que os carros de suas marcas para pronta-entrega, no salão dos concessionários.

“Essas novas matérias-primas estão se tornando um gargalo, rapidamente”, avalia o vice-presidente global da consultoria AutoForecast Solutions, Sam Fiorani. “Com o crescimento gradual do mercado de EVs, a cadeia de fornecimento precisa de crescer, mas ‘commodities’ como níquel, lítio e cobalto acabam freando esse crescimento. Por isso, montadoras de todo o mundo estão formando alianças com mineradoras de lítio e fabricantes de baterias, blindando o fornecimento de metais de terras raras. A companhia que não garantir sua cadeia de suprimentos, o mais rápido possível, não conseguirá competir entre os EVs”, sentencia. Como se vê, não há como retardar a eletrificação.