Uma visita aos ninhos da arara azul e aos encantos da maior área alagada do mundo
Quando o sol se põe e a lua ilumina a noite no Pantanal, uma ave rara e misteriosa deixa a árvore onde permanece durante todo o dia, camuflada, e sai à caça: abre delicadamente suas asas de quase um metro de envergadura e o enorme bico, para captar suas pequenas vítimas que circulam na escuridão. Em seguida, faz ecoar o cantar mais triste que a floresta conheceu. Isso é fato.
Antigamente, mãe-da-lua, também chamada urutau-gigante, tinha um cantar muito bonito, mas certa vez apaixonou-se pela Lua, que não pode corresponder ao seu amor, uma vez que estava comprometida com o Sol. A partir de então, a mãe-da-lua propaga seu sofrimento com um canto triste e arrepiante que ecoa na noite, imitando um grito frágil de desespero. Isso é lenda.
O Pantanal é uma ebulição de lendas e magia, mas também de verdades, algumas doloridas, histórias de desmatamento, destruição, desrespeito à natureza, mas outras gratificantes, de um imenso respeito aos habitantes da floresta.
A história da Arara Azul é daquelas que fazem você acreditar nas boas intenções do ser humano.
Em 1990, a maior arara do Brasil estava condenada à morte: o animal integrava a lista das espécies em extinção em conseqüência da descaracterização do habitat, do tráfico ilegal e da caça para uso das penas em artesanato e adornos indígenas. Vale ressaltar que a exterminação das aves para o uso das penas ocorreu para venda a turistas; entre os índios, apenas o pajé tinha o direito de usar um cocar de penas, que durava décadas e portanto não provocava impacto na natureza. Os mesmo turistas eram os destinatários das peles de onça caçadas indiscriminadamente nas terras onde hoje se promove a cultura da preservação: a Fazenda Caiman, que ocupa uma área de 53 mil hectares no coração do Pantanal do Mato Grosso do Sul, é a sede de campo do projeto Arara Azul, que faz o monitoramento de cinco mil aves que vivem em 713 ninhos espalhados em 57 fazendas da região.
Idealizado pela bióloga Neiva Guedes, que trabalha na preservação da espécie há 28 anos, o Instituto Arara Azul é patrocinado pela Fundação Toyota do Brasil, com objetivo de promover a conservação da biodiversidade do Pantanal. Além da preservação, o Instituto, que tem uma sede em Campo Grande, luta pela preservação de outras aves nativas da região ameaçadas de extinção, além de promover atividades de educação ambiental, com workshops sobre consciência ambiental, cidadania e geração de renda para a população.
A Toyota fornece também o apoio logístico para o monitoramento dos ninhos, com unidades da picape Hilux, com tração 4X4, que permite a locomoção da equipe de biólogos entre as regiões de preservação, onde as estradas são, em sua maioria, não pavimentadas.
A arara azul não é, digamos, um animal muito fácil de preservar. O maior psitacídeo do mundo (chega a um metro e 1,3 kg) é exigente e cultua certa exclusividade no que faz: alimenta-se apenas de castanhas de duas espécies de palmeira: Acuri e Bocaiúva, sendo que apenas a primeira dá fruto o ano todo; a Bocaiuva frutifica só entre setembro a novembro. Uma única espécie de árvore, o Manduvi, concentra 90% dos ninhos naturais, daí a necessidade da construção de ninhos artificiais – são 284, de um total de 745. Só começa a se reproduzir com oito ou nove anos (e a maioria reproduz a cada dois anos), formando casais para a vida toda. A fêmea coloca dois ovos de cada vez e, em geral, só um filhote sobrevive, mas depende dos pais para a alimentação por seis meses.
O grupo das espécies de aves é muito bem estudado, calcula-se que 95% da diversidade global já está descrita. São 18 mil espécies, segundo o recente estudo do Museu Americano de História Natural, quase o dobro do que se pensava.
Mas afinal, por que tanta preocupação com uma espécie, no meio de tantas?
“Só o fato de existir já é uma razão para que ela seja preservada. Todo ser vivo tem o seu valor ecológico, disse Neiva Guedes
“Alem disso – completou – a arara azul é uma bandeira da conservação ambiental. Ao preservar uma espécie como essa você está sinalizando a necessidade da conservação ambiental como um todo, a luta contra o desmatamento, contra a destruição na floresta.”
Percival Maianti, presidente da Fundação Toyota do Brasil, reforça:
“Preservar a arara azul é incentivar a sustentabilidade. A sobrevivência das espécies é um indicativo de preservação do meio ambiente. Em vez de dar comida ao passarinho você deve plantar uma árvore, criar harmonia, fornecer as condições para proporcionar a harmonia do meio ambiente.
Para Marcio Motta, biólogo colaborador do Portal ECOinforme, a importância de preservar qualquer espécie tem grande relevância para a natureza:
“Se prestarmos atenção nos detalhes do corpo dessa espécie – seu bico especializado em quebrar materiais resistentes, as cores pigmentadas de suas penas, a aerodinâmica do seu corpo e seu complexo comportamento social, teremos a noção que foram necessários milhares ou quem sabe milhões de gerações de adaptação e seleção natural para formar a espécie como a admiramos hoje. Cada indivíduo carrega a sua riqueza em suas células – o DNA, o código único de cada indivíduo – e sabendo disso é que podemos entender o trabalho incansável de conservacionistas como a Neiva Guedes. A luta é contra o tempo, pois as populações declinam a cada dia na natureza em troca de um valor incompatível com todo o caminho evolutivo que essa e todas as demais espécies já percorreram até aqui.”
“A perda de uma espécie é algo irreparável do ponto de vista biológico, pois essa sequência de genes possivelmente não existirá em outras espécies. Essas sequências podem ser a chave para combater doenças ou resolver algum problema (ponto de vista utilitarista do DNA)”. (veja abaixo)
Reunião de biomas
O Brasil tem cinco biomas principais – Mata Atlântica, Amazônia, Caatinga, Cerrado e Pampas, embora muitos biólogos também considerem o Pantanal um bioma. Mas ao contrário dos demais, ele é formado por uma reunião de vários tipos de vegetação. Tanto que na região visitada de Miranda e Aquidauana, a vegetação se assemelha com o cerrado, mas há muitas outras variedades de vida animal e vegetal, que originalmente são de outras regiões.
“Aqui tem também mata atlântica, floresta amazônica e caatinga. E há onze espécies de pantanais, uns mais secos, como o de Miranda, com características de cerrado, outros que convivem com cheias quase o ano todo”, explicou a Lana Rosa Miglione, Mestre em Ciências De Preservação Ambiental e guia da Caiman.
Embora riquíssimo em biodiversidade, a região tem poucas espécies autóctones. Nem mesmo o tuiuiú, ave símbolo do Pantanal, é originária daqui.
“Com exceção de alguns bichos, como jacaré, o cuiricará, o gato mourisco e o cervo do pantanal, a vida animal aqui é uma reunião de quase tudo o que existe no Brasil, inclusive a Arara Azul, que é natural da região Centro Oeste”, esclareceu Lana.
É essa diversidade que encanta brasileiros e estrangeiros que reverenciam a maior área alagada do mundo, considerada pela Unesco como Patrimônio Natural Mundial e Reserva da Biosfera.
Quanto vale uma espécie?
Por Marcio Motta
Essa talvez seja uma das perguntas mais complexas para se responder, e possivelmente não exista uma resposta precisa. O processo de especiação – a formação de uma nova espécie – depende de inúmeros fatores, como os químico-físicos (temperatura, luz, umidade, etc.), biológicos (espécies competidoras, presas, predadoras, invasoras…), climáticos ou geológicos (terremotos, deriva continental). Isso sem falar nos eventos que podem chegar sem aviso do espaço, como aconteceu há 65 milhões de anos e produziu um dos maiores eventos de extinção do planeta.
Foi graça a esse meteoro que a chamada Era dos Dinossauros deu lugar ao tempo que vivemos hoje: a Era dos Mamíferos, na qual somos atualmente a espécie mais significativa e impactante. Todos esses fatores podem atuar de forma independente ou se potencializar quando ocorrem juntos. São essas complexas interações ou a ausência delas que impedem precisar o tempo do processo de formação de novas espécies.
Sabemos que eventos como o citado acima são momentos onde acontecem grandes mudanças na vida do planeta. Muitas espécies não suportam a mudança e são extintas, outras iniciam um processo de adaptação e alguns indivíduos podem sobreviver. Se a mudança ao longo do tempo produzir seres que não conseguem mais reproduzir entre si, estes são considerados de espécies diferentes. Esses eventos ocorreram diversas vezes na Terra, e certamente ocorrerão novamente durante os cinco bilhões de anos que restam ao planeta (*).
Na última Era Glacial, há cerca de 12 mil anos, grande parte do Brasil foi afetada pela diminuição da temperatura global. Alguns locais foram menos afetados, como a Amazônia, Mata Atlântica e Pantanal, regiões onde muitas espécies encontraram abrigo durante os longos anos de baixa temperatura. Aquele foi um momento onde houve grandes mudanças na fauna do Brasil, e consequentemente esses locais mantiveram sua alta sua diversidade, legado que persiste até hoje mesmo com a pressão do homem.
O Pantanal é o lar de uma das aves mais incríveis do mundo: a arara-azul. Se prestarmos atenção nos detalhes do corpo dessa espécie – seu bico especializado em quebrar materiais resistentes, as cores pigmentadas de suas penas, a aerodinâmica do seu corpo e seu complexo comportamento social, teremos a noção que foram necessárias milhares ou quem sabe milhões de gerações (anos) de adaptação e seleção natural para formar a espécie como a admiramos hoje. Cada indivíduo carrega a sua riqueza em suas células – o DNA, o código único de cada indivíduo – e sabendo disso é que podemos entender o trabalho incansável de conservacionistas como a Neiva, que há mais de 20 anos estuda e busca proteger essa riqueza individual e intransferível dos indivíduos de vida livre que voam pelos céus do Pantanal. A luta é contra o tempo, pois as populações declinam a cada dia na natureza em troca de um valor incompatível com todo o caminho evolutivo que essa e todas as demais espécies já percorreram até aqui.
A perda de uma espécie é algo irreparável do ponto de vista biológico, pois essa sequência de genes possivelmente não existirá em outras espécies. Essas sequências podem ser a chave para combater doenças ou resolver algum problema (ponto de vista utilitarista do DNA).
Do ponto de vista ecológico, parte-se do pressuposto que todas as espécies possuem relações com as demais que vivem em seu ambiente, numa espécie de teia ecológica. Quando uma é extinta toda a teia entra em desequilíbrio, o que pode acarretar aumento ou diminuição de populações de diferentes espécies, incluindo nós seres humanos.
(*) A questão dos cinco bilhões de anos está relacionada com o Sol.
É sabido que essa estrela também tem um ciclo de vida, devido às explosões de Hidrogênio que a compõe, e sabemos essa idade devido à cor da estrela. Estrelas amarelo-alaranjadas possuem meia-vida. Sendo assim, como o Sol possui aproximadamente cinco bilhões de anos, resta a outra metade tanto para ele quanto para o Sistema Solar.
MARCIO MOTTA, mestre em Ciências Biológicas, professor de Gestão e Legislação Ambiental e pesquisador na Fundação Parque Zoológico de São Paulo, é colaborador do Portal ECOinforme