Líder na tecnologia, Israel vê mercado sob ameaça, enquanto Mobileye mantém previsão para 2025
Imagine um segmento do mercado automotivo mundial em que uma única startup, sozinha, valha US$ 35 bilhões (o equivalente a R$ 175 bilhões). Agora, imagine milhares de pessoas que trabalham neste setor, homens e mulheres, sendo convocadas por forças armadas, enquanto os prazos de entrega não podem sofrer atrasos. Bom, nem todos os leitores que vêm acompanhando o conflito na Faixa de Gaza sabem que Israel abriga os líderes globais no desenvolvimento de tecnologias de mobilidade e condução autônoma e que, para além do trânsito que lembra as grandes cidades brasileiras, com scooters que rodam costurando entre os automóveis e um “concerto” permanente de buzinas, este pequeno país, cuja frota circulante não passa de quatro milhões de veículos (no Brasil, são quase 45 milhões!), é uma peça importantíssima na engrenagem da mobilidade do século 21. “Apesar de o mercado israelense ser pequeno, em termos de volumes, gigantes transnacionais como a General Motors, a Mercedes-Benz e a Ford têm investido alto em centros de pesquisa e desenvolvimento no país”, conta o sócio e especialista automotivo da McKinsey & Co, mais conceituada consultoria global de gestão, Ben Ellencweig. Mas a verdadeira guerra que acontece em Gaza coloca um ponto de interrogação no futuro.
Em mais de sete décadas, Israel teve apenas uma montadora, a Autocars (אוטוקרס, em hebraico), que produziu o feioso Sussita e o esportivo Sabre na cidade de Haifa, entre 1960 e 75 – hoje, a AIL, da cidade de Nazaré Illit, produz veículos exclusivamente para as forças de segurança israelenses. Mas desde que foi dado o pontapé inicial para a virada da eletromobilidade, novas oportunidades surgiram, nominalmente no campo dos sistemas de condução autônoma. “Atualmente, empresas locais impulsionam o desenvolvimento de chips, softwares, sensores, sistemas automatizados de direção e segurança cibernética”, destaca Ellencweig. A Mobileye, desenvolvedora de sistemas avançados de assistência ao motorista e direção autônoma, reafirmou que o embarque de seu produto ocorrerá em 2025 e, só neste ano, a Volvo investiu US$ 30 milhões em uma startup de verificação e validação de assistentes eletrônicos de direção, a Foretellix.
Se o conflito em Gaza se estender, é possível que este e muitos outros planos sejam revistos, afinal, estamos falando de um ecossistema com pelo menos 650 startups que, agora, enfrenta o desafio de se manter ativo enquanto guerra escala e parece estar cada vez mais longe de um acordo de paz. O fato é que, no exato momento em que empresas israelenses abocanham sua maior fatia no setor automotivo, as coisas podem sofrer um revés. De acordo com a mais recente pesquisa de capital de risco da IVC Data and Insights, só no primeiro semestre deste ano, as empresas de tecnologia automotiva do país arrecadaram mais de US$ 200 milhões (o equivalente a R$ 1 bilhão) – em 2022, estes investimentos foram cinco vezes maiores – e só a GM mantém, hoje, um centro avançado com 830 colaboradores trabalhando em baterias para EVs e sistemas de assistência.
O setor da tecnologia de transporte é dos mais importantes de Israel, corporativamente, e o aplicativo de navegação Waze – comprado pelo Google, em 2013, pelo equivalente a R$ 5 bilhões – e a Mobileye, avaliada em R$ 175 milhões, são seus nomes mais conhecidos em nível global. “A Mobileye provou que você pode ser um ator significativo, na cadeia da indústria automotiva, sem ser uma empresa gigantesca, com 100 mil funcionários”, destaca o presidente-executivo (CEO) da empresa com sede em Jerusalém, Amnon Shashua. “As companhias israelenses têm expertise em várias disciplinas, quando se trata do ramo tecnológico, e isso atrai montadoras que buscam ampliar seus ganhos com oferta de novos recursos e serviços embarcados”, sublinha Shashua. Mas isso não as torna imunes à turbulência do conflito.
Maturidade e defesa
Apesar de ser um mercado dez vezes menor que o Brasil, Israel enxerga o automóvel do futuro de forma bem diferente do que os brasileiros imaginam, com uma abordagem mais madura e uma visão empreendedora. “Os carros atuais não são como os de dez anos atrás e os carros de amanhã não serão como os de hoje”, afirma o CEO da empresa israelense de segurança cibernética C2A Security, Roy Fridman. “O carro do futuro será computador sobre rodas e, em função disso, chips, softwares e sensores serão seus insumos mais importantes. E à medida que softwares se tornam a base da arquitetura de um veículo, as necessidades de conectividade crescem como uma bola de neve, abrindo um vasto novo mercado”, explica Fridman. Realmente, não há como negar a digitalização do automóvel e prova disso é que, só em um contrato, a Volkswagen vai adquirir US$ 4 bilhões (cerca de R$ 20 bilhões) em sensores com a tecnologia LiDAR da Innoviz, que fica em Rosh Ha’ayin, próxima de Tel Aviv.
Este também é o caso da Valens, que iniciou suas atividades projetando chips para vídeos de alta resolução e, hoje, desenvolve semicondutores. Em 2022, a Mercedes-Benz esteve entre os clientes automotivos que responderam por 18% de seu faturamento, mas a estimativa de seus gestores é que as montadoras concentrem, nos próximos anos, a maioria de seus pedidos. “Atualmente, Sony e Panasonic são nossos maiores parceiros, mas os fabricantes de automóveis terão cada vez mais participação no nosso negócio”, projeta o vice-presidente de marketing, Dana Zelitzki. Mas onde nasce esta expertise israelense?
Os grandes programas de inovação nascem no ecossistema militar. Isso explica o fato de a expertise tecnológica israelense anteceder a chegada da indústria automotiva no país. “Ao longo de grande parte da sua história, Israel enfrentou vizinhos hostis que, geograficamente, o cercaram. Embora tenha feito a paz com alguns, ainda enfrenta ameaças em Gaza, do Líbano, da Síria e do Irã. É um país que precisa de inovar para manter uma vantagem tecnológica e se manter seguro”, defende o sócio e especialista automotivo da McKinsey & Co, Ben Ellencweig. “Sensores de imagem, chips e softwares são o coração de muitos sistemas de armas. Para além de questões culturais e educacionais, o setor de defesa desenvolve muita tecnologia automotiva”, avalia Ellencweig.
Navegador sem mapas
Os israelenses também têm uma histórica tradição comercial, que é transmitida de pai para filho e desde o ensino primário. “Lembro-me de uma ocasião, quando minha filha ainda estava na terceira série e, voltando da escola, disse que tinha a tarefa em grupo de criar um produto, um produto para consumo. Junto com seus colegas do primário, escolheram um dispositivo de treinamento de cães e, então, criaram uma maquete com caixas de sapatos. Os membros do grupo tiveram que desenvolver um orçamento, um plano de marketing e o os custos só chegaram ao equilíbrio quando minha filha descobriu que a equipe conseguiria as caixas sem ter que comprar os sapatos”, lembra o CEO da desenvolvedora de sistemas de condução autônoma Imagry, com sede em Haifa, Era Ofir. A startup apresentou, recentemente, um sistema sem mapas de alta definição para navegação, clamando para si maior eficiência e menor custo em relação às tecnologias correlatas. “Desde jovens, desenvolvemos soluções específicas, equilibramos orçamentos, empreendemos”.
Mas nada disso é possível sem dinheiro e é por isso que, mesmo durante o conflito em que cerca os palestinos, estrangulando a chegada de ajuda humanitária, Israel mantém abertas as vias para o capital de risco. “Mesmo hoje, você tem um ambiente em Tel Aviv onde pode conversar com cinco, dez vice-presidentes de grandes corporações em um único dia”, disse o gestor do fundo Maniv Mobility, Mike Granoff. “O acesso a recursos é imediato, pelo menos na fase inicial e os empresários israelenses estão satisfeitos e otimistas com o setor automotivo. Durante e, principalmente, após a virada da eletromobilidade, a demanda por novos softwares e inovações no campo da mobilidade trazem e trarão desafios empresariais que o país está pronto para enfrentar”, finaliza Granoff.
E é aqui que as coisas podem se complicar, afinal, nos últimos dez anos, as startups israelenses receberam mais de US$ 6 bilhões (o equivalente a R$ 30 bilhões) só das grandes montadoras, fazendo o número de microempresas do setor de mobilidade saltar de 87 para 644, o que representa 10% dos novos negócios do país. Apesar de o dinheiro, principalmente o dos investidores norte-americanos e europeus, não ter dó de palestinos, africanos ou brasileiros e nem de eles morrerem a tiros, por bombas ou de Covid, nesta semana a coisa azedou no parlamento das Nações Unidas (ONU). Pessoalmente, duvido muito que o massacre de qualquer povo sensibilize a indústria automotiva transnacional, mas é importante saber que, no automóvel do futuro, lá onde ninguém enxerga, haverá sangue deste conflito.