Guerra tarifária de R$ 585 bilhões, na Europa e nos EUA, empurra EVs chineses para Arábia, Irã, Egito, Israel e Turquia
Virada da eletromobilidade já se opera nos maiores produtores de petróleo do mundo: com o Brasil no vácuo, países do Oriente Médio viram a bola da vez para montadoras de EVs chinesas; a Arábia Saudita, do Príncipe Mohammed bin Salman, confirmou o lançamento de sua própria marca de veículos elétricos, a Ceer, e a aquisição de 60% de participação na Lucid Motors, que recebeu US$ 1,8 bilhão – o equivalente a R$ 9 bilhões – diretamente de seu fundo público CRÉDITO – Ceer/SaudiCrown/divulgação
Na geografia da eletromobilidade, há uma verdadeira guerra tarifária em curso, da ordem de US$ 120 bilhões (o equivalente a R$ 585 bilhões). No teatro de operações das casas legislativas europeias e norte-americanas, os combates se operam sem tropas, blindados e bombardeios, mas os fabricantes chineses – os maiores do mundo, quando se trata de EVs – enfrentam um verdadeiro cerco, com aumento nos impostos de importações e ameaças de suspensão de subsídios. Com a estabilização das vendas domésticas atrás da Grande Muralha, onde foram vendidos 4,4 milhões de veículos elétricos só entre janeiro e setembro deste ano (contra 1,5 milhão do mercado brasileiro com um todo), os fabricantes da China focam, agora, nos países do Oriente Médio, desviando suas atenções para aquele que, curiosamente, é o menor mercado do mundo, respondendo por apenas 5% do volume global e, mesmo assim, somados seus números aos da África. Na prática, isso significa que o Brasil e os demais mercados latino-americanos seguirão apartados da transição energética, que continuaremos comprando automóveis equipados com motores a combustão interna e pagando os maiores preços do mundo por uma tecnologia com data de validade expirando, justamente para “financiarmos” compulsoriamente os gastos das transnacionais no além-mar. “O Brasil será o último, entre seus pares, a migrar para a eletromobilidade”, disse o analista sênior da consultoria especializada em biocombustíveis Green Pool Comodity Specialists, Eder Vieito, à “Bloomberg”.
Os países do Oriente Médio têm uma grande tradição petrolífera, mas convencer turcos, sauditas, iranianos, sírios, libaneses, israelenses e egípcios, entre outros, das vantagens dos EVs parece mais fácil do que combater o negacionismo, no Brasil. Os chineses veem a região como uma grande oportunidade, até agora inexplorada. Nos seis países do Golfo Pérsico, os modelos 100% elétricos não têm mais do que 0,4% do mercado de automóveis (no Brasil, esta participação é de idêntico 0,4%), mesmo assim, marcas chinesas estão de olho nesta fatia do bolo, nominalmente a Xpeng e a Zeekr, esta segunda do Grupo Geely, que estão lançando novos híbridos e EVs em Israel, Catar e Bahrein. “Com a guerra tarifária, na Europa, o Oriente Médio surge como mercado promissor para os chineses, avalia o diretor-administrativo da consultoria Autoforesight, com sede em Xangai, Yale Zhang.
Para ele, os EVs “made in China” enfrentarão uma série de desafios, que começam com o simples fato de os combustíveis fósseis serem extremamente baratos, no Oriente Médio. “A falta de infraestrutura de recarga também é um limitador, bem como o calor infernal do Verão local, que coloca a qualidade dos pacotes de baterias à prova. Estamos falando de um nicho de mercado que cresce lentamente e de países onde a procura por veículos elétricos é pequena”, detalha o gerente de marketing da Nasser Bin Khaled Automobilies, distribuidor catari da MG Motor, marca britânica que pertencia ao Grupo Rover e foi adquirida pela gigante estatal SAIC, em 2007, e da Lynk & Co, marca de EVs da Geely e “prima” da Volvo.
A verdade é que o Oriente Médio mira o futuro e, para além de suas riquezas em petróleo e gás, enxerga os EVs como a alternativa mais sustentável de mobilidade. Prova disso é que, no final de julho deste ano, a BlackRock, maior gestora de ativos do mundo e uma das líderes no segmento de baixo carbono, surpreendeu muitos de seus investidores com a nomeação para seu conselho administrativo de ninguém menos que Amin Nasser, presidente da maior empresa petrolífera do mundo – a Saudi Aramco. “A Arábia Saudita tem trabalhado em sua própria marca de veículos elétricos, a Ceer, e também possui cerca de 60% de participação na Lucid Motors, que recebeu US$ 1,8 bilhão – o equivalente a R$ 9 bilhões – diretamente de seu fundo público”, pontua o presidente-executivo (CEO) da BlackRock, Larry Fink.
Logística e engajamento
Em Israel, mesmo com o conflito na Faixa de Gaza, os EVs seguem ganhando mercado e, só no primeiro semestre deste ano, este segmento viu suas vendas crescerem 210%. Já no Bahrein, o Marson Group anunciou uma parceria com a norte-americana Gauss Auto para a construção de uma fábrica de veículos elétricos. “Há um reconhecimento de que estes países precisam de fazer algo em relação ao clima”, destaca Tammy Klein, fundadora e principal consultora da Transport Energy Strategies, que fornece informações de estratégia e políticas públicas sobre combustíveis para o setor de transportes. “Os países do Médio Oriente não são diferentes dos outros e há um engajamento em curso, tanto é que os Emirados Árabes Unidos (EAU) estão se juntando aos suecos da Einride, empresa escandinava especializada em veículos autônomos (AVs), inteligência artificial (IA) e ‘machine learning’ com foco no setor de logística”, acrescenta Tammy. A Einride, que aparece na 13ª posição da lista “Disruptor 50” da CNBC, que classifica as empresas com maior capacidade inovativa do mundo, vai estabelecer novos parâmetros de sustentabilidade para o transporte marítimo do país.
Mas a coisa não pára por aí: enquanto o Brasil esbarra em uma rede pública de recarga praticamente inexistente, o projeto conhecido como ‘Falcon Rise’ vai implementar oito estações nos 480 quilômetros entre Abu Dhabi, Dubai e Sharjah onde irão operar 2.000 caminhões elétricos e outros 200, autônomos. Parece um contrassenso, mas enquanto a indústria automotiva brasileira aponta o etanol como saída preferencial para transição energética nacional, os países que dormem sobre as maiores reservas de petróleo do mundo aderem à virada da eletromobilidade. “O etanol é um bom combustível, mas este tema esconde o desejo que os fabricantes têm de não enfrentar este desafio”, avalia o analista e sócio da Barassa & Cruz Consulting, Robson Cruz. “Tratar o etanol como solução para as emissões de carbono é mais barato para as montadoras, mas não é a melhor opção para o Brasil”, sentencia.
Enquanto as transnacionais que produzem automóveis no Brasil seguem buscando uma solução mais barata, de um lado, e lucrativa, de outro, o país pode ficar preso ao etanol, vendo seus ganhos em emissões estagnados e marginalizado à cadeia de abastecimento global. “Temos potencial para sermos o terceiro maior mercado global de EVs e não há razão para negarmos o progresso”, disse o vice-presidente de políticas públicas da subsidiária sul-americana da General Motors, Fabio Rua, à “Bloomberg”. De fato, a GM é uma das únicas companhias – senão a única – que vê os híbridos ‘plug-in’ a álcool como um paliativo. “Seremos neutros em carbono, até 2040, e vamos replicar nossa estratégia global no país”, garantiu Rua, reafirmando que a GM irá implementar sua estratégia global também por aqui.
O fato é que, cada vez mais eremítico, o Brasil flerta com o isolamento porque enquanto as maiores petrolíferas do mundo se preparam para um futuro de nova matriz energética, ficamos nas mãos de montadoras estrangeiras e do setor sucroalcooleiro nacional, que estima R$ 22 bilhões de faturamento neste ano. Juntos, fabricantes e produtores de etanol apertam nossos pescoços para tirar todo o sumo de nosso suado dinheirinho, deixando os tupiniquins – como sempre – no bagaço e sem perspectivas…