A pandemia pode fazer os jovens reverterem a ideia de não possuir carro próprio
Já há algum tempo, especialistas apontam grandes mudanças na mobilidade urbana. Algumas pesquisas indicam que uma parcela dos jovens das grandes cidades não têm o desejo de possuir um carro. O alto custo de ter um carro próprio, adjunto ao caótico trânsito dos centros urbanos e à praticidade oferecida atualmente por metrôs e transportes particulares por aplicativos (como Uber, 99, Cabify, etc), fazem com que muitas pessoas vejam a propriedade de um automóvel como desnecessária e ilógica. Entretanto, este cenário pode ter sofrido uma reviravolta em 2020, como mais uma das consequências da pandemia de Covid-19.
É um argumento válido que a indiferença com relação a possuir um carro ou não pode ser um pensamento muito mais comum em jovens de classe média residentes em centros urbanos, mas há de se reconhecer que esta é uma característica geracional que não pode ser ignorada. De acordo com pesquisa realizada em 2018 pela Anfavea (Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores) em onze capitais brasileiras, as pessoas das gerações Y e Z veem menos o automóvel como um objeto de status, se comparadas às gerações anteriores.
Além disso, manter um carro é caro: um estudo divulgado em janeiro de 2019 pela Associação Brasileira de Planejadores Financeiros (Planejar), usar um carro diariamente na cidade de São Paulo tem um custo médio anual de R$ 20 mil. Ainda segundo esse estudo, o custo para um paulistano se locomover diariamente utilizando transporte por aplicativo apresenta uma considerável redução em relação ao carro particular, caindo para R$ 10 mil. Mesmo sendo um valor ainda relativamente elevado, esse tipo de transporte oferece ao usuário o conforto de se deslocar de carro, sem ter que se preocupar com os gastos com combustível, estacionamento, impostos e manutenção. Ainda de acordo com a pesquisa da Anfavea, os entrevistados mais jovens são os que mais utilizam transportes por aplicativos. Outras tendências que também contribuem para o abandono da ideia de ter um carro são a maior preocupação com o meio ambiente e a valorização cada vez maior de se morar perto do trabalho.
Isso tudo, porém, pode estar mudando. De acordo com uma reportagem publicada na edição de Setembro de 2020 na revista Superinteressante, intitulada “A cidade pós-coronavírus será mais poluída e desigual”, a pandemia pode deixar as grandes cidades ainda mais “carrocêntricas”. Na matéria, o jornalista Bruno Vaiano afirma que o advento do home office para diversas profissões, que pode se tornar uma tendência mundial perpetuada no futuro pós-pandemia, criou um boom no mercado de condomínios afastados do centro, que possuem um metro quadrado mais em conta do que nas regiões centrais e possibilita às pessoas a prática das atividades diárias com menor risco de contágio. O home office pode tornar obsoleta a necessidade do indivíduo de morar perto da sede física da empresa onde trabalha. Outro efeito dessa mudança é que isso torna a cidade mais dependente de carro do que já é, pois as pessoas passam a percorrer distâncias maiores para ir ao mercado, à academia, ao restaurante, etc. E muitas vezes, nas áreas suburbanas, a oferta de transportes públicos não é tão abundante.
Como consequência disso, a demanda por transporte público pode cair ainda mais do que a grande queda que já teve este ano. De acordo com dados da Associação Nacional de Empresas de Transporte (NTU), do início da pandemia no Brasil até o dia 30 de junho, as empresas de ônibus acumularam um déficit de R$ 3,72 bilhões. Uma das causas desse prejuízo é que um grande número de pessoas que passaram a trabalhar de casa. Outra, é o medo do contágio.
O transporte por aplicativo, embora mais seguro que o transporte público, ainda oferece riscos. O carro de uso pessoal acabou se tornando o meio de transporte para médias e longas distâncias mais seguro na pandemia, pois é o meio de transporte que oferece menos contato com terceiros. A parcela da população que possui condições de utilizar um carro próprio diariamente sente-se mais segura fazendo isso. Uma pesquisa intitulada “Intenção de compra no cenário COVID-19”, conduzida em maio de 2020 pela Webmotors, questionou as pessoas sobre quais meios de transporte elas descartariam após o fim da quarentena. Em resposta, dentre as pessoas que não tinham intenção de comprar um carro no ano de 2020, 56% disseram que descartariam os transportes públicos e 30% descartariam também o uso de carro por aplicativo.
A estudante Silchya Rodrigues, 22, não pensava em ter um carro próprio até o ano passado. “Eu não via motivo, já que eu acho mais legal e ecologicamente correto usar ônibus no dia a dia e também Uber, vez ou outra, já que assim eu ando de carro sem ter que me preocupar com combustível, seguro, desvalorização, além de poder fazer outras coisas enquanto me desloco, sem ter que ficar prestando atenção no trânsito”, afirmou ela. A pandemia fez com que a jovem mudasse sua visão sobre o assunto: “ao longo da pandemia eu precisei ir a alguns lugares e isso me deixou aflita, por ter que entrar em contato com pessoas. Se eu pegasse um Uber também ficava preocupada imaginando se algum passageiro que andou ali antes estivesse com o vírus. Além disso, para fazer compras sem carro também tem sido complicado. Tudo isso me fez pensar na segurança e na comodidade de ter um carro só meu nesse tipo de situação”. Isso mostra que a pandemia pode ter ressignificado a posse de carro para pessoas que até recentemente não viam sentido em possuir um.
Ademais, também de acordo com a reportagem já citada da revista Superinteressante, o transporte público sofre um sério risco de ser sucateado após a pandemia, devido aos grandes prejuízos que vem sofrendo e do possível futuro déficit de passageiros. Com o transporte coletivo pior, mesmo com o vírus erradicado, as pessoas com poder aquisitivo para ter um carro tenderão a optar por tê-lo.
No fim das contas, a pandemia provavelmente mudará, não apenas a curto prazo, mas também a longo prazo, a dinâmica do trânsito nas grandes cidades. Moradores de grandes centros urbanos que antes não viam muito sentido em ter carro, agora com a pandemia, passaram a cogitar a possibilidade de ter um. Além disso, o regime remoto para algumas profissões pode passar de exceção a regra, e isso possibilita que as pessoas possam morar em locais mais distantes do centro, e não precisem se deslocar para trabalhar, o que reduz os custos de manutenção de um carro. Juntando-se a esses fatores está uma possível piora na qualidade dos transportes públicos, o que faz com que as pessoas com condições financeiras para se deslocar de carro optem por esta alternativa. Tudo isso contribui para cidades mais carrocêntricas e para que as pessoas prefiram meios de transportes mais individualistas. Isso pode ser visto como algo negativo ou positivo, mas o fato é que a pandemia fez o automóvel se tornar um forte objeto de desejo novamente.
Por Guilherme Lopes Machado
Estudante de jornalismo da Faculdade Cásper Líbero
3º colocado no Prêmio Autoinforme Estudantes de Jornalismo
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