Mesmo com altos investimentos (R$ 2,4 trilhões), carro que anda sozinho terá apenas 4% do mercado em 2030
O brasileiro se orgulha do amor que nutre por automóveis, mas a paixão cega e, enquanto nosso mercado patina e a desindustrialização no setor avança, o mundo discute assuntos que, por aqui, ainda são ficção científica. Ao mesmo tempo em que sonhamos com modelos elétricos (EVs) de primeira geração, é a automação ganha força no “Primeiro Mundo”. Nos Estados Unidos, o Subcomitê para Trânsito e Rodovias da autoridade nacional de Infraestrutura e Transportes coordena um fórum que, recentemente, ouviu representantes de organizações não-governamentais, da Associação da Indústria de Veículos Autônomos (AVIA) e da startup Aurora, além de sindicatos do setor automotivo e especialistas em segurança, que pedem urgência na criação de uma legislação específica para a regulação deste mercado. “Temos que criar benefícios para a implementação de carros e caminhões autônomos, sob o risco de perdemos uma posição de liderança que, hoje, não está garantida”, afirmou o conselheiro geral da AVIA, Ariel Wolf, à “AutoNews”.
Um estudo da empresa de pesquisa GlobalData aponta que carros sem motorista de Nível 5 (totalmente autônomos) terão uma participação de apenas 1,9% nas vendas norte-americanas e canadenses, até 2035, contra uma fatia de 1,6%, na Europa, de 3,1%, nos países asiáticos, e de 3,3% na China. Isso move o eixo dos modelos autônomos (AVs) para longe dos EUA, justamente no momento em que o transporte de massas e os serviços de compartilhamento focam esta tecnologia. Wolf sabe que a concorrência chinesa é duríssima e que novo programa de classificação divulgado pelo Instituto para Segurança Rodoviária (IIHS), no mês passado, não passa de um paliativo para evitar abusos por parte dos motoristas, quando usam recursos como o AutoPilot, da Tesla, e o PilotAssist, da Volvo.
“Outros países já tomaram medidas regulatórias, então temos que despertar o interesse e a confiança dos consumidores, acelerando a automação veicular”, afirma o conselheiro geral da AVIA. O clamor do setor, por lá, ocorre em um momento de inflexão, com o Congresso norte-americano usando de catimba para aprovar uma legislação específica para AVs, freado pelo recorde de mortes decorrentes do uso inadequado e de falhas desta tecnologia. “O governo deve cumprir seu papel de indutor da economia, criando regras claras para este segmento, que promete benefícios em segurança, eficiência e mobilidade. Os veículos autônomos enfrentam um cenário crítico, pois os legisladores não apoiam o desenvolvimento desta tecnologia”, criticou o vice-presidente de segurança da Aurora, Nat Beuse.
Carros sem motorista são um sonho distante dos brasileiros, onde os legisladores sequer sabem de que eles se tratam, mas, nos EUA, China e Alemanha, os AVs receberam aportes da ordem de US$ 451 bilhões (o equivalente a R$ 2,37 trilhões), só nos últimos cinco anos. Ou seja, entre 2016 e o ano passado, um segmento que não deve chegar nem a 4% de participação de mercado, daqui a uma década, movimentou cifras 50 vezes superiores ao aporte de R$ 44 bilhões que toda a indústria automotiva brasileira (todas as marcas, somadas) tem previsto para o país, até 2025. Traduzindo esses números, estamos ficando para trás, para não dizer que retrocedendo à “Idade da Pedra”, quando o assunto é automóvel – uma paixão tupiniquim que só se justificaria, mesmo, pelo masoquismo.
Enquanto o gigante dorme em “berço esplêndido”, o Centro para Estudos Estratégicos Internacionais (CSIS), com sede em Washington, calcula que o mercado de AVs movimentará US$ 3 trilhões (o equivalente a R$ 15,8 trilhões), anualmente, a partir de 2040. “Os benefícios – da automação – vão além do potencial de negócios para as montadoras, empresas de tecnologia e startups, bem como a maior conveniência para usuários e empresas de logística. A transição para este modelo preencherá a divisão entre centros de inovação e regiões onde a manufatura é ou foi a atividade econômica dominante”, afirmou Jack Caporal, membro associado da SchollChair in International Business no CSIS, à “Deutsche Welle”.
Um estudo assinado por Caporal prevê que, só no setor de infraestrutura subjacente (minerais críticos, semicondutores e outras tecnologias de próxima geração) serão criados 450 mil postos de trabalho, nos EUA, em um intervalo de cinco anos. “Tanto os EVs quanto os AVs exigirão investimentos em infraestrutura inteligente e conectividade, demandando força de trabalho”, enfatiza.
Temor de desemprego
Em contraposição, a União Norte-Americana dos Trabalhadores do Transporte teme que a mobilidade autônoma acabe por gerar desemprego. O presidente da entidade, John Samuelsen, disse ao subcomitê que trabalhadores rodoviários, funcionários de companhias aéreas e serviços públicos “estão preocupados com o risco de perderem seus empregos” e este temor aumenta com a perspectiva de os AVs ganharem as ruas “aleatoriamente, prejudicando os assalariados”. Ele disse que os sindicatos endossarão uma nova legislação, conquanto ela regule as novas tecnologias, exija altos padrões de segurança e garanta a geração de novos postos de trabalho. “A integração dos AVs aos sistemas viários terá um enorme impacto no futuro da mobilidade e trará efeitos para todos que compõem a ‘linha de frente’, dos usuários aos profissionais”.
Enquanto o Senado empaca na aprovação de uma legislação nacional, a Cruise, empresa que desenvolve tecnologias para condução autônoma e que fica sob o guarda-chuvas da General Motors, confirmou que espera, ainda para este primeiro trimestre, uma autorização da Comissão californiana de Serviços Públicos para cobrar pelas viagens sem motoristas feitas por seus robotáxis. O SoftBank vai injetar US$ 1,35 bilhão (o equivalente a R$ 7,1 bilhões), reservados desde 2019, para esta fase de implantação comercial do negócio. “A maioria das pessoas que embarca em um táxi autônomo experimenta um prazer infantil, na primeira viagem. Mas a verdade é que elas vão se habituando e passam até mesmo a cochilar durante os trajetos”, conta seu fundador e presidente-executivo (CEO) interino, Kyle Vogt.
Desde a última terça-feira, a Cruise abriu uma lista de espera para o público em geral se inscrever para viagens gratuitas, em San Francisco. A empresa é avaliada, hoje, em US$ 30 bilhões (o equivalente a quase R$ 160 bilhões), pouco menos de um terço do valor de mercado da própria GM. Apesar da indefinição regulatória, os AVs são tão promissores que, perguntada se a gigante automotiva listaria a Cruise no mercado de ações para capitalização, sua presidente-executiva (CEO), Mary Barra, foi enfática na negativa: “a GM considera que a Cruise é muito bem financiada”.
Vale citar que, nesta semana, a Tesla confirmou o recall de mais de 50 mil unidades de seus Model S, X, Y e 3, produzidos entre 2016 e 2022, justamente para a desativação da função “rolling stop”, de seu sistema semiautônomo, que apresenta falhas na detecção de outros veículos, pedestres ou ciclistas em cruzamentos, não imobilizando o carro totalmente antes de prosseguir, o que fere, inclusive, muitas legislações estaduais norte-americanas.
Por Homero Gottardello