Nesta longa entrevista, feita com exclusividade para o Canal Autoinforme, o presidente da FCA, Antonio Filosa, fala do momento da indústria automobilística e da empresa, que fechou 2019 pela primeira vez como líder do mercado brasileiro.

Filosa não se esquivou de nenhum assunto: falou do lucro da FCA no Brasil, explicou porque o carro brasileiro é o mais caro do mundo e disse que o gap tecnológico do carro brasileiro em relação ao carro do primeiro mundo está cada vez menor.

Filosa confirmou que a FCA vai montar uma locadora para atender empresas e disse que está planejando hoje o carro que o consumidor vai usar no futuro. Coloca como maior preocupação do cliente o custo total de propriedade do veículo e avalia que a maior preocupação do consumidor é com o custo total de propriedade do veículo.

Aposta na liderança da Fiat no mercado brasileiro, mas só enxerga essa possibilidade com o sucesso dos SUVs que a marca vai lançar. Sobre a união com a PSA diz que “por enquanto ainda somos concorrentes”.

Engenheiro, italiano, amante de carros, disse que ficaria um pouco triste em saber que “algo que trabalhei em toda a minha vida agora se tornou o inimigo do meio ambiente”, referindo-se à proposta do fim do carro a combustão no Brasil.

Filosa encerrou a conversa dizendo que “o mundo automobilístico está mudando muito e nós queremos ser protagonistas dessa mudança”.

JOEL: O presidente da Anfavea, Luiz Carlos Morais, disse que as matrizes trouxeram  75 bilhões de dólares (*) para o Brasil para investimento e para “salvar as montadoras instaladas aqui”, que dão prejuízo. A Indústria brasileira não dá lucro?
FILOSA: A FCA dá lucro. No ano passado a FCA deu 500 milhões de euros de lucro na região da América Latina. Nosso investimento se fundamenta muito sobre esse histórico de resultados que temos na América Latina, principalmente no Brasil, e também de uma visão que temos, muito otimista, do que será o Brasil do futuro. Estamos investindo 16 milhões de reais na região.

JOEL: Então, se a FCA, que é líder de mercado, dá lucro, todas as outras montadoras têm prejuízo no Brasil? Qual a razão da indústria brasileira não oferecer o lucro desejado pelos investidores?
FILOSA: Eu não sei quais são os números e resultados dos concorrentes. Mas o Brasil, que é potencia regional, passou uns cinco ou seis anos com uma forte contração da economia, o que resultou numa série de dificuldades para realizar lucros. Isso se deu exatamente quando as previsões do mercado apontavam ao contrário, com vendas acima de quatro milhões de unidades, o que fez as empresas realizarem grandes investimentos em capacidade de produção.

JOEL: Essa fase está acabando então?
FILOSA: Sim, pra mim está acabando.

JOEL: Vocês têm a previsão de lançar um, ou até dois SUVs no mercado até o ano que vem.
FILOSA: Sim, dois.

JOEL: A Fiat sempre foi ágil em relação à demanda do mercado. Por que demorou tanto para produzir um SUV? Até a Rolls Royce tem um SUV e a Fiat está começando agora a entrar no segmento. O que você vai oferecer de especial nesse carro para poder dar um salto em relação à concorrência?
FILOSA: Primeiro acho que nós fomos pioneiros, porque foi a Jeep que inventou esse segmento no mundo e inventamos o segmento no Brasil também. Quando formamos a FCA, pegamos a marca Jeep, que era fortíssima nos EUA, e iniciamos a produção no Brasil com a fábrica de Pernambuco. Com o lançamento do Renegade e do Compass o segmento triplicou, quadriplicou. Agora vamos investir na marca Fiat, que terá dois SUVs de pura personalidade de Fiat, com muita tecnologia democrática, ou seja, de acesso direto ao público.

“Os impostos e a infra estrutura ineficiente faz o carro brasileiro ser um dos mais caros do mundo”

JOEL: Por que o carro brasileiro é o mais caro do mundo? Antes que você me fale do imposto, digo que mesmo se eliminarmos a alta carga tributária ele continua sendo o mais caro do mundo. O carro tem 20, 25 até 30% de impostos, mas o lucro no Brasil é o maior do mundo também, segundo os próprios dirigentes das montadoras.
FILOSA: O carro brasileiro está entre os mais caros do mundo por duas razões principais, é a carga tributária, que, infelizmente, onera o carro de uma forma relevante; e a segunda são as  ineficiências logísticas de infra estruturas que oneram a nossa longa cadeia de suprimentos. Nós temos uma cadeia que passa da exploração das minas de minério de ferro, ou da extração de petróleo para criar plástico, até as concessionárias. As ineficiências logísticas são elevadíssimas. A combinação de tributo e de uma ineficiência logística gera um preço elevado para o cliente final.

JOEL: A palavra de ordem na indústria hoje é inovação. A grande concorrência faz com que as montadoras inovem a cada momento, antes mesmo de uma mudança expressiva do modelo. Mas isso não acaba prejudicando o consumidor? Às vezes o sujeito demora dez anos para realizar o sonho de comprar o carro zero, e depois de um ano o seu bem está ultrapassado.
FILOSA: Digamos que nós inovamos ou renovamos a nossa oferta porque o consumidor pede, a verdade é essa. De um lado existe um ambiente de alta competitividade para que todo mundo seja estimulado a apresentar algo novo para o cliente final e por outro lado o cliente quer novidade. Então é a combinação da elevada competição e de uma demanda do consumidor que leva a indústria a inovar ou renovar cada vez mais o próprio line up. Nós fazemos o que o cliente quer.

“O gap entre o carro brasileiro e o europeu sempre existiu, mas está cada vez menor”

JOEL: Por outro lado, a evolução do carro brasileiro é lenta. Nossos carros são defasados em relação a Europa, EUA e Japão, além disso, os equipamentos de segurança só são colocados nos carros quando realmente tem uma pressão muito grande, ou do consumidor ou da lei. Lembrando que nos anos 1980 as montadoras não equipavam o carro nem mesmo com o retrovisor do lado direito; passaram a equipar só depois que o item foi obrigatório.
FILOSA: Isso está mudando muito rapidamente. Nós temos aqui, na nossa oferta de produtos  hoje, o Jeep Renegade e o Jeep Compass, que são exatamente os mesmos que se vende na Europa e nos EUA. O Jeep Compass, nos EUA, é líder do segmento dos SUVs compactos, assim como aqui é líder do segmento SUV, exatamente o mesmo carro, o que muda é a motorização, porque aqui usamos o etanol. Esse gap sempre existiu, mas está cada vez menor. No caso da Jeep os carros são os mesmos; no caso da Fiat é um pouco diferente, porque temos aqui modelos diferentes do que temos na Itália. Lá é o Cinquecento e o Panda, aqui é Mobi, Argo, Cronos etc, mas as tecnologias e os conteúdos são muito equiparados. Antes, de fato existia uma diferença, mas agora esse gap está quase zerado.

JOEL: Com a informação mais disseminada, é mais fácil hoje o consumidor exigir esse tipo de evolução…
FILOSA: Sim, isso é muito bom.

JOEL: Tem um problema no Brasil grave, eterno, que é a manutenção do carro, a peça de reposição original é muito cara. O consumidor vai à concessionária enquanto tem garantia, mas depois abandona a rede oficial. Por que a peça de reposição é tão cara?
FILOSA: Isso é comum em todos os países do mundo, em todos os mercados, as peças de reposição genuínas têm um valor mais alto. O que acontece é que o fornecedor que faz a peça de reposição é o mesmo fornecedor que faz a peça que é montada na fábrica, mas nós exigimos um rigoroso controle de qualidade. Isso encarece o produto, mas dá mais conforto ao cliente. Ele compra uma peça que tem durabilidade, que é reconhecida como genuína e que é absolutamente alinhada com a proposta de qualidade e de durabilidade do carro.

“Nós queremos aprender a vender carro para o consumidor do século XXII”

JOEL: A FCA já aprendeu a vender carro para o consumidor do século XXI? Do jeito que está a internet, o comprador só vai à concessionária para fechar o negócio.
FILOSA: Nós queremos aprender a vender carro para o consumidor do século XXII.

JOEL: Como vai ser esse consumidor?
FILOSA: Vai ser interessante, vai ser muito diferente do consumidor de hoje e do que foi no passado. Os consumidores hoje estão cada vez mais antenados, vocês fazem um trabalho espetacular de dar informações de primeiro nível para eles, isso ajuda a informação deles e claramente o acesso a internet através de smartphones e computadores permite uma grande velocidade naquelas informações. Nós, a cada lançamento, temos longas conversas e relacionamentos com os consumidores de hoje e do futuro, por isso falei do século XXII, claro, como uma brincadeira. Nós ouvimos o consumidor através de clínicas, nos relacionamos com os nossos concessionários e com todos os parceiros que temos lá fora, estamos sempre em processo de aprendizagem, de forma que os modelos que estamos planejando hoje vão atender os desejos que o consumidor vai expressar lá na frente.

JOEL: Os aplicativos de mobilidade chegaram para ficar e estão fazendo uma verdadeira revolução na mobilidade e isso está mudando completamente o comportamento do jovem. Muita gente não tem carro, só usa o aplicativo, usa um carro de aluguel. Isso está mudando também a forma como a montadora produz ou vende os seus carros? Porque trata-se de um novo consumidor, que não vai escolher o carro na concessionária, ele vai alugar. Ele tem outra visão do produto?
FILOSA: Sem dúvida. É verdade que existe uma parte da população brasileira e mundial que está começando a olhar o carro como serviço, então quer comprar o serviço de um aplicativo e não o carro, mas também é verdade que esses aplicativos estão fazendo aumentar a demanda total de carro. Você seguramente tem um carro ou dois carros na sua garagem, mas também usa o Uber.

“A gente tem que achar a solução para reduzir o custo total de propriedade do veículo”.

JOEL: Verdade!
FILOSA: Então os aplicativos fazem crescer a demanda, mas são demandas diferentes, esse tipo de cliente tem que ser entendido a fundo, não somente ele, mas também o intermediário comercial, por exemplo, a locadora. Precisamos oferecer à locadora um pacote de produtos e serviços como o consumidor precisa. Ele olha muito o custo total de propriedade: manutenção, seguro etc. A gente tem que achar a solução melhor para que o custo total de propriedade para ele seja competitivo.

JOEL: Incentivando o sujeito a ter o próprio carro além de usar os aplicativos.
FILOSA: Isso

JOEL: Mas tem uma diferença muito grande: eu tenho dois carros em casa e escolhi o modelo, a versão, o momento de comprar. Já o Uber que eu peguei hoje, nem lembro que carro é.
FILOSA: O motorista daquele Uber escolheu aquele carro porque o custo total para ele é menor do que outro carro, então precisa entender qual é o carro que vai entregar para ele esse valor, que é o custo total de propriedade ou de uso daquele carro.

JOEL: Um carro de entrada no Brasil custa 50 mil reais, só 2% da população pode comprar. Só a elite compra carro, embora haja uma tremenda demanda por mobilidade no Brasil. Há milhões de consumidores potenciais fora desse mercado.
Porque a indústria não fabrica um carro realmente popular, ao custo final de R$ 25 mil, R$ 30 mil, por exemplo? Um veículo que você nem precisa chamar de carro. Uma forma de mobilidade intermediária entre a moto e o carro, que tenha restrições de circulação e não necessite as tecnologias modernas conforto e segurança, que encarecem o preço final. Você acha que tem espaço para um veículo desse tipo no Brasil?
FILOSA: Seguramente teria uma demanda gigantesca no Brasil assim como nos outros países da América Latina. Claramente para um projeto desse tamanho precisa ter muitas condições associadas. Por exemplo um marco regulador. Precisaria pensar em algo que permita comercializar um veículo sem ter que usar o ABS e outros equipamentos. Segundo, precisa mudar o sistema fiscal porque é R$ 25 mil é o que se paga em atributos em um carro que se vende por R$ 70 mil .

JOEL: Você fala que um imposto pode chegar até 50 %, então é só o governo isentar o imposto que o preço do carro atual cairia pela metade?
FILOSA: Seria uma revolução grande, seja no marco regulatório, seja do marco fiscal e para fazer um veículo desse tipo possível desde que mude muitas condições.

“Nós estamos de olho nesse mercado (de locadoras), para atender empresas e não o cliente final”

JOEL: A rede de revendas é um grande parceiro das montadoras, aliás a concessionária é a cara da montadora. E a rede não está muito contente com as vendas diretas, feitas pela montadora para os frotistas. Agora a FCA quer criar sua própria locadora. Explica o que vai ser das redes de revenda Fiat e e Jeep daqui pra frente diante dessa nova realidade.
FILOSA: As nossas redes são de fato os principais parceiros da montadora. Segundo, é verdade que existe um movimento de todas as montadoras em criar as próprias locadoras. O competidor japonês tem um projeto em andamento no mundo inteiro e o competidor alemão também está ensaiando esse tipo de locação no mundo e também no Brasil. Nós estamos de olho nesse mercado, para atender empresas e não o cliente final. Nós estamos pensando em uma fatia pequena de mercado, não explorada ainda.

“A PSA e a FCA serão uma única empresa, mas por enquanto somos concorrentes”

 JOEL: A FCA já assinou um acordo com a PSA (que tem as marcas Peugeot e Citroën) para formar um novo grupo automobilístico. São várias perguntas:

Como está o processo de fusão?

Não vai haver uma sobreposição de segmentos no Brasil?

Haverá fechamento de fábricas considerando a produção na Argentina e no Brasil ?

A Fiat fica com o segmento de entrada e a Citroen e a Peugeot com o segmento superior?

FILOSA: A PSA e a FCA assinaram um documento de entendimento no final do ano passado sobre a nossa união. Agora estão sendo seguidos os processos administrativos, por enquanto somos concorrentes. Quando essa união for formalizada, iniciaremos o trabalho conjunto. Pode ter inúmeras possibilidades, o que sabemos é que o acordo fortalecera as duas empresas. E a empresa que será dessa união será ainda mais forte do que a soma das duas.

“Sem SUV a Fiat nunca será líder de vendas”

JOEL: Há dois anos você disse que a FCA seria líder em 2019. E foi. E disse também que a Fiat seria líder em 2020, você confirma essa previsão?
FILOSA: Acho que a Fiat deve ser líder em 2020, com a chegada do SUV. Mas queremos ser líderes de resultados. Queremos ter resultados financeiros; é isso que nossos acionistas pedem. Sem o SUV a Fiat não poderá ser líder, pois essa categoria é muito importante no Brasil, representa quase 25% das vendas.

“Eu ficaria triste em saber que algo que trabalhei em toda a minha vida agora se tornaria  inimigo do meio ambiente

 JOEL: A Comissão de Constituição e Justiça do Senado aprovou o projeto de lei que põe fim no carro a combustão no Brasil. Eu queria saber o que o “engenheiro italiano” Antonio Filosa pensa sobre isso?
FILOSA: Seria interessante observarmos o que se está pensando sobre o futuro da mobilidade; de um lado tem a exigência e a expectativa do cliente com a preocupação com o meio ambiente, isso deve ser um desafio contínuo da indústria automobilística. Por outro lado há uma frota gigante de carros com motor a combustão. Então é preciso estudar direito isso que está sendo proposto. Eu ficaria um pouco triste em saber que algo que trabalhei em toda a minha vida agora se tornou o inimigo do meio ambiente, mas é preciso destacar que o etanol, que é um recurso renovável, permite que um carro a combustão seja quase neutro quando você analisa toda cadeia: do plantio da cana ao etanol no tanque. Talvez o Etanol seja a solução para o Brasil.

JOEL: Mesmo assim, eliminar essa tecnologia não é complicado?
FILOSA: Sim, é meio estranho. Talvez isso seja o início de uma nova revolução, um marco na indústria automobilística.

JOEL: Está na hora do carro elétrico, a Fiat vai entrar nesse segmento?
FILOSA: Sim, a Fiat vai lançar um carro elétrico. Esse ano queremos iniciar o caminho da eletrificação quanto com a Fiat quanto com a Jeep. Vamos fazer isso no final do ano

JOEL: É o Cinquecento?
FILOSA: Sim, o Cinquecento elétrico.

JOEL: O carro elétrico é uma tendência sem volta?
FILOSA: Nunca é nada sem volta, mas o carro elétrico é uma das tendências que começou com muita forca na Ásia e na Europa e que vai se ampliar nos demais mercados. O Brasil tem competência e a infraestrutura para o uso do etanol e por isso esse combustível estará sempre em evidência. Mas o elétrico e o híbrido vão continuar se expandindo.

JOEL: Vocês estão apresentando agora duas versões do carro elétrico…
FILOSA: Sim, o elétrico puro é o Fiat Cinquecento e o hibrido é o Jeep Compass.

“O mundo automobilístico está mudando muito e nós queremos ser protagonistas dessa mudança”

JOEL: Antonio Filosa, presidente da FCA, o seu recado final.

FILOSA: O mundo automobilístico está mudando muito e nós queremos ser protagonistas dessa mudança. Vamos continuar com o nosso plano de investimento de 16 bilhões de reais para poder oferecer aos clientes brasileiros as melhores tecnologias com o nosso jeito, o jeito Fiat e o jeito Jeep.

 

(*) Os US$ 75 bilhões que as matrizes das montadoras instaladas no Brasil enviaram para o País na última década são referentes a aumento de capital, com ampliação de fábricas e linhas de montagem, e de empréstimos, nesse caso, devolvidos para as matrizes.